PESCA DE RECURSOS DEMERSAIS: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE SUAS TRANSFORMAÇÕES AO LONGO DO TEMPO

 

por Paula Maria Gênova de Castro

 

           A pesca de espécies demersais1 na região Sudeste/Sul do Brasil é realizada por diversos aparelhos de pesca: arrasto de parelha2 e de portas (simples e com tangones3), linha-de-mão, espinhel-de-fundo4, rede-de-emalhe e covos (armadilhas), objetivando a captura de peixes e de crustáceos.

           Cada aparelho tem características técnicas específicas, direcionadas a áreas de atuação e espécies-alvo diferentes, como é o caso do arrasto de parelha direcionado à captura de peixes demersais costeiros. Já o arrasto de portas, utilizado com a embarcação armada com tangones (grandes braços laterais nos quais fixam-se os cabos de tração das redes - uma rede em cada "braço"), tem primariamente como alvo da captura os camarões, sendo que os barcos que atuam com este aparelho possuem uma grande sobreposição de áreas de operação e muitas espécies de captura em comum com as parelhas.

           As informações apresentadas por técnicos, pesquisadores, armadores e pescadores presentes em reuniões para discutir o estado da arte e o ordenamento da pesca de camarões e de peixes demersais nas regiões Sudeste e Sul do Brasil, realizadas em novembro / dezembro de 2000 e em maio de 2001, no Centro de Pesquisas e Extensão Pesqueira das Regiões Sudeste e Sul (CEPSUL) do IBAMA5, indicaram que as frotas de arrasto de parelha e de arrasto de portas (camaroneiros), apesar das espécies-alvo específicas, estão atuando sobre as espécies mais disponíveis em determinado momento, em função da queda do rendimento dos recursos tradicionais, agravando ainda mais a situação dos estoques costeiros (peixes e camarões).

          O arrasto de parelhas captura muitas espécies, estando o grosso da produção concentrado sobre a corvina (Micropogonias furnieri), a pescada-foguete (Macrodon ancylodon), o goete (Cynoscion jamaicensis) e o peixe-porco (Balistes capriscus), para as parelhas que atuam ao norte de C. de Santa Marta Grande,SC, enquanto àquelas que atuam ao sul do Cabo de Santa Marta a costa do RS, capturam intensamente, além da corvina e da pescadinha, outras espécies dessa mesma família tais como a castanha (Umbrina canosai) e a pescada olhuda (Cynoscion guatucupa). Além dessas espécies, são capturadas em menores quantidades: a pescada-olhuda (Cynoscion guatucupa), a pescada-branca (Cynoscion leiarchus), a pescada-cambucu (Cynoscion virescens) e diversas espécies de bagres e linguados, além de cações e raias. Atualmente, nota-se uma tendência no aproveitamento de espécies de menor valor no mercado, que antes faziam parte da categoria "mistura"6,7, e hoje já surgem na comercialização como categorias isoladas (é o caso dos indivíduos de maior porte da betara ou papa-terra Menticirrhus americanus; do peixe-espada Trichiurus lepturus, e, também, o grupo de peixes cartilaginosos: cações e raias).

          O maior aproveitamento do que antes era rejeitado (exemplares de espécies ou em tamanho sem interesse comercial devolvidos a maioria já mortos ao mar) e o surgimento da categoria "mistura" como um dos principais itens no desembarque das várias modalidades de pescarias costeiras, em toda a região Sudeste/Sul, são sinais claros de exaustão dos recursos tradicionais mais valorizados pelo mercado.

 

HISTÓRICO DAS PESCARIAS

          A pesca de peixes demersais é realizada nas costas sudeste e sul do Brasil há várias décadas. Em 1944, a frota sediada na cidade de Santos (SP) era composta de 4 parelhas de porte médio e 11 de porte pequeno, denominadas "parelhinhas" (que capturavam na costa paulista no sistema sol-a-sol, ou seja, saiam ao amanhecer e voltavam ao entardecer).

          Na década de 50, as parelhas e os arrasteiros de porta da empresa Taiyo começaram a operar em toda a região Sudeste/Sul, pescando principalmente na costa de Santa Catarina e Rio Grande do Sul e desembarcando em Santos, SP. Na década seguinte, com a criação da SUDEPE, e com os incentivos fiscais às empresas nacionais (Decreto-Lei Nº 221/67), houve um considerável incremento na atividade pesqueira, com o aumento das frotas, entre outros aspectos. Embora a maior parte dos investimentos tenha sido dirigida à pesca e à industrialização do camarão-rosa (Farfantepenaeus brasiliensis e F. paulensis) com vistas ao mercado externo, a captura de peixes demersais também foi incentivada. A partir de 1972/73, quando a pesca de camarões entrou em declínio, muitos barcos transferiram suas atividades para a pesca de peixes demersais, cujas populações sofrem com uma sobrepesca há décadas. Diversos exemplos de sobrepesca são relatados por pesquisadores para os estoques sudeste e sul da pescadinha-real ou pescada-foguete  (Macrodon ancylodon), entre outras espécies demersais costeiras.

          A partir da década de 80, devido à crise mundial do petróleo, a frota que antes atuava entre Abrolhos (BA, 17ºS) e o Chuí (RS, 33ºS), e que muitas vezes explorava águas uruguaias e argentinas, teve sua área de atuação reduzida com o deslocamento da sede de embarcações de maior porte para os portos de Itajaí (SC) e Rio Grande (RS). Até então, os desembarques eram concentrados em Santos, em função do mercado consumidor de São Paulo. Com a crise econômica e a conseqüente elevação dos encargos operacionais, várias empresas transferiram-se para cidades do sul, passando a efetuar o abastecimento dos grandes centros consumidores por via terrestre. Atualmente, as frotas do Rio de Janeiro e São Paulo operam preferencialmente entre Cabo Frio (RJ) e Cabo de Santa Marta Grande (SC). Já a frota de Santa Catarina desloca-se entre as costas de São Paulo e do Rio Grande do Sul. E a frota gaúcha, por sua vez, concentra-se preferencialmente nas costas de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul.

          Até meados da década de 80, a frota pesqueira dirigida a recursos demersais era composta por barcos que operavam exclusivamente com arrasteiros de porta e parelha. A partir dessa data, observou-se uma tendência de adaptação de parte dessa frota a outras artes de pesca, principalmente às redes-de-emalhe que visam, principalmente, a captura de cações e de corvina. Operando essa arte de pesca passiva (com ação que independe do movimento do barco) e, portanto, com menor consumo de combustível, tais embarcações atuam em áreas que diferem das tradicionais áreas costeiras dos arrasteiros.

          Atualmente, enquanto a pesca costeira explota os recursos em regiões até cerca de 80 metros de profundidade, a pesca de linha e espinheleiros de fundo vem explorando regiões com profundidades por vezes muito superiores a 100 metros, capturando espécies como cherne, batata, namorado e abrótea.

         Nos últimos trinta anos, os recursos pesqueiros demersais da região Sudeste e Sul têm sofrido intensa explotação pelas frotas de arrasto, além das embarcações armadas com espinhel ou com redes-de-emalhar. O excesso de esforço de pesca aplicado sobre os recursos ao longo dos anos, como também o descaso com portarias vigentes (tamanho de malha na rede, distância mínima da costa etc.) vem causando grandes danos aos recursos envolvidos, com prejuízo a vários usuários (pescador, empresário, consumidor) e ao meio ambiente como um todo. De acordo com o IBAMA (1995)8, de certa forma, o mercado interno foi o grande incentivador, absorvendo todo o pescado sem grandes restrições em relação à qualidade e tamanho. Segundo esse órgão ambiental, vários esforços foram empreendidos no sentido de introduzir o uso de redes seletivas na frota, sem sucesso. A frota cresceu e ficou dependente da captura de peixes juvenis, já que é notória a queda na quantidade de peixes adultos.

         A entrada de novas opções de pescado de melhor qualidade no mercado, promovida pelo Mercosul, aumentou a competição para o setor pesqueiro brasileiro, complicando ainda mais o já comprometido (pela baixa produção e preços elevados) comércio de peixes demersais tradicionais.

         Assim, não há mais espaço para uma pesca sem controle. O setor pesqueiro nacional precisa ser mais seletivo e bem administrado, visando mais a qualidade do que a quantidade. Portanto, é hora de repensar o ordenamento pesqueiro, de forma mais global e participativa, envolvendo todos os setores da sociedade, bem como levando em consideração estudos integrados que envolvam: aspectos biológicos das diferentes espécies e suas interrelações, características ambientais (fisiográficas, oceanográficas e climáticas),  dinâmica das pescarias,  aspectos sócio-econômicos e políticos e, também, estudos de etnoconservação.

 

ESPÉCIES DEMERSAIS IMPORTANTES

 

 Distribuição
O Goete, Cynoscion jamaicensis (Vaillant & Bocourt, 1883), é uma espécie demersal costeira, habitando fundos de areia/lama, em profundidades que podem chegar até 100 m. Distribui-se desde o Panamá e Antilhas Maiores até a Argentina, sendo mais abundante na região sudeste do Brasil, onde há evidências de grupos populacionais distintos. Na costa brasileira, a espécie realiza deslocamentos latitudinais no final da primavera e no verão, acompanhando as massas de água quente que penetram mais ao sul até 34º; no restante do período, com o recuo dessas massas d’água, o goete tem sua distribuição limite em 32º S (Castro et al, 2005 – Programa  de Avaliação do Potencial Sustentável dos Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva - REVIZEE/Score Sul9).

 

Distribuição
O peixe-porco, Balistes capriscus (Gmelin, 1788), é uma espécie demerso-pelágica da família Balistidae. Com ampla distribuição geográfica, ocorre desde Nova Scotia (Canadá) até Argentina, bem como na costa sudoeste da África. Na costa brasileira, a espécie é encontrada em maior abundância do sul da Bahia até o Rio Grande do Sul, sendo bastante comum na costa do Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo onde a pesca é mais intensa  (Castro et al, 2005 – Programa  de Avaliação do Potencial Sustentável dos Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva - REVIZEE/Score Sul10).

 

Distribuição
A corvina, Micropogonias furnieri (Desmarest, 1823), é uma espécie de ampla distribuição geográfica, característica das regiões tropical e subtropical. Ocorre desde a Península de Yucatán, ao longo das Antilhas, na costa meridional do Caribe e América do Sul até o Golfo de San Matias, na Argentina. É encontrada em toda a costa brasileira, sendo abundante nas regiões Sudeste e Sul, constituindo a parcela comercial mais importante entre os peixes demersais desembarcados (Carneiro et al, 2005 - Programa  de Avaliação do Potencial Sustentável dos Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva - REVIZEE/Score Sul11). 

 

Distribuição
A pescada-foguete, Macrodon ancylodon
(Bloch & Schneider, 1801)  é uma espécie demersal costeira que habita fundos de areia e lama, ocorrendo em profundidades de até 60 m, sendo mais comum até os 30 m e habitando em águas estuarinas quando jovem. Distribui-se no Atlântico Ocidental, desde a Venezuela até a Argentina. No Brasil é mais abundante na região sul e em seguida na sudeste (5,6), caracterizando duas populações distintas (Carneiro et al, 2005 - Programa  de Avaliação do Potencial Sustentável dos Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva - REVIZEE/Score Sul12).

 

 


1 Espécie demersal é aquela que vive na coluna de água e se alimenta de organismos do fundo.


2 A pesca com rede de arrasto na modalidade de parelha funciona com dois barcos trabalhando em conjunto e arrastando uma única rede que atua em contato com o fundo. Pesos de chumbo na parte inferior e bóias na parte superior da rede mantêm a sua abertura vertical. A distância entre as embarcações determina a abertura horizontal da rede. Ambas as aberturas estabelecem as dimensões da assim chamada "boca da rede", por onde passa o produto da pescaria.


3 Na pesca com rede de arrasto com portas, um único barco arrasta a rede, sendo que a abertura horizontal do aparelho é obtida pelo uso das "portas", estruturas tabulares às quais se fixam os cabos que saem das extremidades ("mangas") da rede. Portas que, por sua forma e posicionamento no aparelho, exercem uma força para os lados, afastando-se uma da outra, e levando à abertura horizontal necessária. A abertura vertical da "boca" é obtida por meio de pesos e bóias, como na rede de parelha.

Na pesca de arrasto em geral, os animais são colhidos pela rede, caracterizando-a como um aparelho de pesca ativo.


4 A pesca com espinhel-de-fundo é uma pescaria com anzóis na qual, em um único cabo principal são fixados por vezes até milhares de cabos secundários com anzóis iscados nas extremidades, e que ficam dispostos, a espaços regulares, sobre o fundo do mar.

Na pesca com espinhel, seja de anzóis ou de armadilhas, os animais vêm ao aparelho atraídos pelo odor das íscas e acabam presos, caracterizando esse tipo de aparelho como de pesca passiva.


5 PEREZ, J. A. A.; PEZZUTO, P. R.; RODRIGUES, L. F.; VALENTINI, H.; VOOREN, C. M. 2001  Relatório da reunião técnica de ordenamento da pesca de arrasto nas regiões Sudeste e Sul do Brasil.  In: Notas Técnicas da FACIMAR - Revista da Faculdade de Ciências do Mar. v.5 Itajaí: Universidade do Vale do Itajaí; Centro de Educação Superior de Ciências Tecnológicas da Terra e do Mar. 1-34.


6 A "mistura" é a denominação que uma categoria de pescado recebe no momento do desembarque, sendo composta por espécies de baixo valor no mercado e por exemplares de pequeno porte de espécies de interesse econômico.


7 CASTRO, P. M. G. DE; CARNEIRO, M. H.; SERVO, G. J. DE M; MUCINHATO, C. M. D. & SOUZA, M. R. 2003. Dinâmica da pesca de arrasto de parelha do Estado de São Paulo. IN: Cergole, M.C. & Rossi-Wongtschowski, C.L.D.B. Análise das principais pescarias comerciais do sudeste-sul do Brasil: Dinâmica das frotas pesqueiras. Programa REVIZEE/MMA/SECIRM/FEMAR. Ed. Evoluir, São Paulo, p. 65-115.

8 IBAMA, 1995 Peixes Demersais: Relatório da 4a Reunião do Grupo Permanente de Estudos, realizada no período de 08 a 12 de novembro de 1993. Itajaí: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, Centro de Pesquisas e Extensão Pesqueira das Regiões Sudeste e Sul. 127. (Coleção Meio Ambiente). Série Estudos Pesca, N°16.

9 CASTRO, P. M. G. DE; CARNEIRO, M. H.; CERGOLE, M. C.; SERVO, G. J. DE M;MUCINHATO, C. M. D. 2005. Cynoscion jamaicensis (Vaillant & Bocourt, 1883) IN: Rossi-Wongtschowski, C.L.D.B. (Org.) Análise das principais pescarias comerciais do sudeste-sul do Brasil: Dinâmica Populacional das Espécies em Explotação. Programa REVIZEE/MMA/SECIRM/FEMAR. São Paulo, 2005, p. 46-51.

10 CASTRO, P. M. G. DE; BERNARDES, R. A.; CARNEIRO, M. H.; SERVO, G. J. DE M. 2005. Balistes capriscus (Gmelin, 1789) IN: Rossi-Wongtschowski, C.L.D.B. (Org.) Análise das principais pescarias comerciais do sudeste-sul do Brasil: Dinâmica Populacional das Espécies em Explotação. Programa REVIZEE/MMA/SECIRM/FEMAR. São Paulo, 2005, p. 29-34.

11 CARNEIRO, M. H.; CASTRO, P. M. G. DE; TUTUI, S. L. dos S.; BASTOS, G. C. C. 2005. Micropogonias furnieri (Desmarest, 1823) (Estoque Sudeste) IN: Rossi-Wongtschowski, C.L.D.B. (Org.) Análise das principais pescarias comerciais do sudeste-sul do Brasil: Dinâmica Populacional das Espécies em Explotação. Programa REVIZEE/MMA/SECIRM/FEMAR. São Paulo, 2005, p. 94-100.

12 CARNEIRO, M. H.; CASTRO, P. M. G. DE 2005. Macrodon ancylodon (Bloch & Schneider, 1801) (Estoque Sudeste) IN: Rossi-Wongtschowski, C.L.D.B. (Org.) Análise das principais pescarias comerciais do sudeste-sul do Brasil: Dinâmica Populacional das Espécies em Explotação. Programa REVIZEE/MMA/SECIRM/FEMAR. São Paulo, 2005, p. 81-87.


Paula Maria Gênova de Castro é pesquisadora do Instituto de Pesca da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo. O presente texto é parte de sua tese de doutorado, defendida no Instituto Oceanográfico da USP em agosto de 2000, cujo título é: "Estrutura e dinâmica da frota de parelhas do Estado de São Paulo e aspectos biológicos dos principais recursos pesqueiros demersais costeiros da região Sudeste e Sul do Brasil ( 23º - 29º S)".

Contato: paula@pesca.sp.gov.br ou paulagenova@terra.com.br



Reprodução autorizada desde que citado o autor e a fonte


Dados para citação bibliográfica(ABNT):

CASTRO, P. M. G de. PESCA DE RECURSOS DEMERSAIS: algumas reflexões sobre suas transformações ao longo do tempo. 2006. Artigo em Hypertexto. Disponível em: <http://www.infobibos.com/Artigos/2006_2/PescaDemersais/index.htm>. Acesso em:


Publicado no Infobibos em 18/9/2006

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