FORRAGEM PRODUZIDA A PARTIR DA PALHA DA CANA-DE-AÇÚCAR
A  HUMANIZAÇÃO DA  PRODUÇÃO DE CANA

José Abílio Silveira Cosentino
José Luiz Guimarães de Souza

 

A euforia do setor sucroalcooleiro e a rapidez na expansão da cultura da cana-de-açúcar são recebidas com apreensão e receio por outros setores produtivos, principalmente os consumidores, pela possibilidade de escassez dos grãos, elevação do preço dos mesmos e agravamento das condições sociais e ambientais.

Entretanto, diversos artigos têm sido publicados no sentido de tranqüilizar a todos, mostrando tecnologias para intensificação da produção e ou ganhos em produtividade, como por exemplo, maior utilização da cana-de-açúcar e seus subprodutos na produção de carne nos confinamentos. Por outro lado, intensificam-se as pressões dos órgãos governamentais e não governamentais sobre o setor, no que diz respeito aos aspectos sócio ambientais de interesse aos produtores, trabalhadores e a sociedade em geral, que é representada pelos consumidores.

A integração entre as duas atividades é de extremo interesse para o Brasil pelo peso que representam na sua balança comercial. E é nessa linha de raciocínio, que vamos apresentar as considerações a seguir para justificar o título deste artigo, usando como exemplo o Estado de São Paulo.

Dados do Instituto de Economia Agrícola, da Secretaria de Agricultura e Abastecimento mostram que a área de pastagens é de 9,7 milhões de hectares (apesar da redução sofrida entre 2005 e 2006, ser de 3,06%), e o rebanho é de 12,65 milhões de cabeças (segundo levantamento de novembro de 2006). Portanto, mesmo com a explosão da ocupação canavieira, a pecuária paulista continua forte. (João Sampaio em artigo no Suplemento Agrícola do jornal “O Estado de São Paulo, em 02 de maio de 2007”).

A cana-de-açúcar ocupa 4,3 milhões de hectares conforme estimativa de safra da Secretaria da Agricultura, e deverá ocupar dentro de cinco anos, uma área de 6 milhões de hectares.

Segundo Rípoli, T.C.C.et al (2004) e Lamonica, H.M. (2005), cada hectare de cana-de-açúcar produz de 9 a 14% de palha (base na Matéria Seca - MS), que representa aproximadamente 10 toneladas/hectare. Portanto 4,3 milhões de hectares produzem 43 milhões de toneladas de palha, das quais, parte é queimada e parte permanece sobre o solo. Porém, em cinco anos serão 6 milhões de hectares ou 60 milhões de toneladas de palha.

No caso do Estado de São Paulo, para a engorda de bovinos em confinamento, durante 100 dias (para facilitar os cálculos, apenas), utilizando-se 43 milhões de toneladas de palha, seria possível compor a dieta como volumoso, de cerca de 86.000.000 cabeças/ano, ou seja, um número aproximadamente 6,8 vezes maior que o atual rebanho bovino paulista.

Pode parecer exagero, mas vejamos: cada boi magro confinado vai consumir, por exemplo, dieta composta por volumoso (50%) e concentrado (50%), perfazendo um total de 10 kg de MS/dia. Portanto, 5 kg de MS serão fornecidos pela palha da cana, e os restantes 5 kg de MS serão provenientes do concentrado (grãos, farelos, vitaminas e minerais).

Na prática serão aproximadamente, 600 kg de palha e 560 kg de concentrado/boi, em 100 dias de confinamento, considerando a palha com 85% de MS e o concentrado com 90%.

É isso mesmo, 43 milhões de toneladas de palha da cana-de-açúcar, são suficientes para atender às necessidades de 86.000.000 cabeças quanto ao volumoso. Por outro lado, seriam necessárias outras 43.000.000 toneladas de concentrados (base MS), para o balanceamento da dieta desses animais, durante o período do confinamento, de 100 dias.

Podemos facilmente imaginar o que esses números significam do ponto de vista sócio econômico para o Estado de São Paulo, na geração de novos empregos, serviços, comércio de insumos e na maior distribuição de renda, além dos ganhos em produtividade e rentabilidade das propriedades envolvidas. Não podemos deixar de ressaltar, ainda, os ganhos e benefícios proporcionados quanto aos aspectos ambientais.

A integração cana-pecuária, aliada à gestão das propriedades e análise de riscos futuros, pode promover a verticalização da produção de carnes, com qualidade “tipo exportação” ou do tipo da que é produzida nos países do “primeiro mundo”.

São Paulo pode servir de exemplo para o mundo, pois além de ganhar em produtividade e agregação de valor, proporcionará melhor qualidade de vida e maior distribuição da renda aos milhares de produtores rurais que compõem as suas diferentes regiões, muitas delas com forte tradição na pecuária, como é o caso do Oeste Paulista.

Também estará contribuindo para a fixação das famílias na zona rural e atendendo aos princípios da Agroecologia, ou sejam: “produção de alimentos com o aproveitamento de resíduos, evitando desperdícios, promovendo o desenvolvimento auto-sustentável, socialmente justo e ecologicamente correto”.

Os valores apresentados acima, correspondem a 100% do recolhimento da palha da cana-de-açúcar, porém, basta que apenas uma parte seja efetivamente recolhida para compor a alimentação de bovinos, como por exemplo, 50% e ainda assim o resultado é “espetacular”, ou seja: 43.000.000 cabeças/ano, que representa mais de 3 vezes o rebanho paulista e mais de 100% do abate anual de bovinos hoje no país. E isso, utilizando-se apenas metade da palha da cana produzida no Estado de São Paulo.

Usando a tecnologia denominada de “forragem verde hidropônica” ou FVH como é também conhecida, de forma muito rápida (15 – 24 dias) e com baixa necessidade de água, a palha da cana-de-açúcar pode ser transformada em alimento volumoso de qualidade, além de poder ser produzida ao longo de todo o ano.

O restante dessa palha poderá ter outros usos, quais sejam: na cobertura do solo, na Floricultura, Horticultura, Silvicultura, Avicultura, Artesanato, Decoração e na produção de compósitos para uso na construção civil ou outros setores, que serão tema de outros artigos.

Desta forma, milhares de empregos serão criados, colaborando para fixação e manutenção do homem no campo, além de, tornar economicamente viáveis as pequenas propriedades, promover a valorização do produtor rural através da reciclagem de conhecimentos e novas tecnologias e, acima de tudo, contribuir com o setor sucroalcooleiro no sentido do ambientalmente correto e socialmente justo.

Novas áreas, hoje ocupadas pela pecuária de corte ou leite, poderão ser disponibilizadas para produção da cana-de-açúcar ou outras culturas de interesse regional, estadual ou nacional, como: seringueira, reflorestamento com essências nativas, frutas em geral ou eucalipto, entre outras.

O QUE É  “FORRAGEM VERDE HIDROPÔNICA” OU “FVH”

A “FVH” ou forragem verde hidropônica é uma tecnologia moderna, “avançada” para nossos sistemas produtivos tradicionais, como a pecuária extensiva, intensiva e até mesmo a agricultura.  É chamada de hidropônica, porque é um processo de produção sem uso do solo, e no presente caso, tem a palha da cana-de-açúcar como substrato.

No substrato, é realizada a semeadura utilizando-se 1,0 – 2,0 kg /m², com sementes de milho ou outro tipo, como por exemplo, milho, aveia, soja, cevada, trigo, triguilho, milheto, labe-labe, feijão guandu (tradicional ou o tipo anão), e após 15 - 20 dias já pode ser colhida (substrato+folhas+raízes+grãos não germinados+resíduos dos grãos germinados) e fornecida aos animais ruminantes ou não ruminantes

A necessidade de água se resume a 4-6 litros/m²/dia, muito inferior a outros sistemas de irrigação tradicionalmente usados. Pode ser feito com regadores ou micro aspersores.

Desta forma, podemos colher o mesmo m² por 18 - 24 vezes/ano, fato esse jamais conseguido nos sistemas produtivos tradicionais, quer sejam, extensivos, semi-intensivos ou mesmo intensivos.

A “FVH” pode ser fornecida “fresca” ou então, ser armazenada na forma de silagem ou na de pré-secado. Os tipos de silos podem ser de superfície, trincheira, “bunker”, ou ainda, “cincho”, todos eles dimensionados conforme a capacidade produtiva de cada propriedade.

Não há praticamente, necessidade de máquinas de grande porte, do tipo das forrageiras “automotrizes” para colheita de 4 ou 6 linhas de milho para confecção de silagem, ou das enormes semeadoras e colhedoras, vagões forrageiros, vagões misturadores, e outras tantas como estamos acostumados a ver na nossa agropecuária e nos confinamentos super dimensionados.

Bastariam algumas máquinas pequenas, como por exemplo, tratores (10 a 30 CV); ancinho enleirador AF 320/8; transportador/cortador de fardos AGRO FORN; mini enfardadeira de câmara fixa AF-60; mini empacotadeira automática AF3, que poderão ser vistas em demonstração no site www.agroforn.com.br . Todas estas máquinas têm custo muito menor que o das máquinas maiores, destinadas ao uso nas grandes áreas.

Os sistemas de produção estariam espalhados pelos milhares de produtores rurais, que já possuem instalações para manejo dos animais, curral, cocho para alimentação e para sal mineral, bebedouros. A produção de animais confinados estaria distribuída por todo o Estado de São Paulo entre os produtores, que forneceriam aos frigoríficos com regularidade, quantidades de animais com qualidade e dentro dos padrões exigidos atualmente.

Frigoríficos, como por exemplo, BERTIN, FRIBOI, MARFRIG, INDEPENDENCIA, MATABOI, todos de grande porte e inúmeros outros de menor porte, ANGELELI, FRIGOL, MONDELI, etc., poderiam ser abastecidos regularmente com animais desse tipo, ou sejam de alta qualidade.

Por outro lado, olhando-se do ponto de vista do conforto animal e das certificadoras, esses animais seriam terminados próximos aos frigoríficos e aos grandes centros consumidores (SP, RJ, PR, MG), com distâncias abaixo de 400 km. Na sua maioria, seriam transportados pelos caminhões boiadeiros nas boas estradas, asfaltadas e bem conservadas, como é o caso de São Paulo, reduzindo o estresse e outros tipos de danos nos animais.

A aquisição desses animais pelos produtores de São Paulo, seria realizada mediante parcerias pré-estabelecidas junto a produtores paulistas e dos estados vizinhos como MG, MS, GO, MT.

A simplicidade na produção e a difícil ocorrência de perdas, aliada à sua alta produtividade, qualidade constante ao longo do ano, baixo custo de produção por unidade de MS, NDT e PB, fazem da “FVH” uma excelente tecnologia para a verticalização da produção de carnes e de leite.

Esta moderna tecnologia proporciona ainda outras vantagens, que passamos a citar abaixo:

Do ponto de vista tecnológico:

·         Maior produção por unidade de área e por unidade de tempo;

·         Maior número de ciclos produtivos/ano (18 a 24 colheitas/ano na mesma área);

·         Produz forragem de elevado valor nutritivo, boa palatabilidade e boa digestibilidade;

·         Fácil manipulação do valor nutritivo da FVH com o uso de diferentes tipos de sementes e ou de substrato;

·         Produção constante qualitativa e quantitativa, na maior parte do país, independente das alterações climáticas;

·         Devido à sua qualidade, a FVH é componente facilitador na composição das dietas dos animais;

·         Não necessita de máquinas pesadas ou grande porte, para sua produção;

·         Pode ser utilizados no trato de bovinos de corte, leite, ovinos, caprinos, suínos, coelhos, aves;

·         Pode complementar a pecuária extensiva nas adversidades (sêca, geada, pragas),devido seu ciclo curto de produção (15 a 20 dias);

·         Proporciona a produção concentrada de esterco, que poderia ser reaproveitado como adubo, substrato, ou geração de energia (biogás / biodigestores);

·         Proporciona menor gasto de energia pelo animal, pois elimina os deslocamentos dos mesmos na busca por alimentos e água;

·         Sistema de produção da FVH atende às normas da segurança alimentar em todo o processo;

·         Promove a liberação de áreas para outras culturas de interesse da região ou da comunidade (fruticultura, horticultura, reflorestamentos, etc.);

·         Apresenta simplicidade na produção e dificilmente ocorrem perdas;

Do ponto de vista econômico, social e humano:

·         Promove o desenvolvimento econômico, social e combate a pobreza e a miséria no campo;

·         Baixo custo por unidade de MS, NDT e PB;

·         Possibilita o desenvolvimento auto sustentável e preservação do meio ambiente;

·         Permite a inclusão de todos os familiares no sistema de produção, inclusive os mais idosos;

·         Facilita a participação das pessoas com disponibilidade parcial de tempo, como esposa, filhos, portadores de deficiências, e outros;

.         Proporciona maior valorização do homem do campo;

.         Colabora na fixação do homem no campo, protegendo-o nas adversidades climáticas;

·         Aumenta a produção de alimentos, quer para os animais como para o homem;

·         Promove a exploração integrada de atividades mais rentáveis, elevando a renda gerada;

·         Permite a produção com regularidade e de forma concentrada, facilitando o desenvolvimento de associações, cooperativas e ou micro empresas rurais;

·         Possibilita a manutenção da produção de alimentos de origem animal, próxima aos grandes centros consumidores, sem agravá-la de problemas ambientais;

Do ponto de vista político, educacional e ambiental:

·         Possibilita o uso mais democrático da terra;

·         Auxilia na viabilização dos assentamentos e vilas rurais em todas as regiões do território nacional;

·         Colabora na redução das desigualdades sociais;

·        Promove a educação através da capacitação profissional, difusão e implementação das novas tecnologias e boas práticas de produção, da gestão do recursos e desenvolvimento do comércio justo e solidário, com a participação de todos;

·        Promove a concentração das pessoas no campo, facilitando desenvolvimento de Políticas educacionais, de segurança, saúde, habitação, transporte, esportiva e turismo rural;

·         Promove a cidadania e a valorização profissional do homem do campo;

·         Preserva o meio ambiente e os recursos hídricos devido ao baixo consumo de água para

      sua produção, além de não necessitar do tratamento das sementes, utilização de adubos, defensivos e ou agrotóxicos;

·         Promove o aproveitamento de resíduos, na redução dos desperdícios de energia e trabalho com transportes, devido a maior concentração da produção;

·         Atende aos princípios da Agroecologia: produção de alimentos, auto sustentabilidade, aproveitamento dos resíduos e redução no desperdício de alimentos;

·         Possibilita a produção de biodíesel a partir dos resíduos dos frigoríficos, resultantes do incremento no número de animais abatidos;

·         Proporciona melhor qualidade de vida, respeitando o meio ambiente;

·         Colabora para a não queima da palha da cana, reduz a poluição, melhora a qualidade do ar, reduz os efeitos nocivos das emissões aos sistemas respiratório e cardiovascular dos seres humanos expostos às queimadas (CANÇADO, J.E., médico pneumologista, (Jornal de Piracicaba, 2 de maio de 2007, p. A-5);

·         Elimina os efeitos da queimada da palha da cana-de-açúcar no aquecimento global.

      Segundo estudos do Professor Carlos Cerri, pesquisador do CENA (Centro de Energia Nuclear na Agricultura-ESALQ-USP ), cada hectare de cana-de-açúcar não queimado evita que 1,1 tonelada de carbono seja lançada à atmosfera (Jornal de Piracicaba, 2 de maio de 2007, p.A-5).

Concluindo, a utilização da FVH ou forragem verde hidropônica, só pode resultar em benefícios para todos aqueles que se inserem no setor sucroalcooleiro, do pequeno produtor ao usineiro, bastando para isso mudar o foco. Em vez de pensar e agir em prol da utilização da palha da cana-de-açúcar unicamente quanto ao aspecto da geração de energia, vamos pensar na utilização dessa mesma palha sob o aspecto “não energético”, usando-a em benefício de todos, produtores rurais ou não, pois quando acontecem as queimadas da palha da cana-de-açúcar, os efeitos nocivos atingem a todos, sem distinção de raça, cor, religião, idade ou classe social.

O mundo exige uma mudança radical na postura de cada cidadão! Façamos a nossa parte! Vamos lutar para que o tanque do nosso veículo se mantenha cheio, mas também a comida na nossa mesa seja farta!

Gostaríamos de terminar com uma frase de Lester Brown: 

Nós não recebemos a terra como herança de nossos ancestrais,
nós a tomamos emprestada dos nossos filhos
!”

Piracicaba, 16 de maio de 2007


José Abilio Silveira Cosentino é Economista pela Faculdade de Economia São Luiz, São Paulo-SP, 1969.  Tem Curso de Aprimoramento em Política e Estratégia, pela Escola Superior de Guerra /Adesg–1994.
Contato: yaguarete@brturbo.com.br  ou yaguarete@gmail.com   site:
www.ecocana.org

 

José Luiz Guimarães de Souza é Engenheiro Agrônomo formado em 1968 pela Faculdade de. Ciências Agronômicas–UNESP – Campus de Botucatu,SP.  Possui Doutoramento na Área de Solos e Nutrição de Plantas, em 1973, pela Faculdade de Ciências Agronômicas - UNESP, Campus de Botucatu,SP.
Contato
jucaguimaraes@uol.com.br ou
jucaguimaraes61@gmail.com   Site:
www.ecocana.org



Reprodução autorizada desde que citado o autor e a fonte


Dados para citação bibliográfica(ABNT):

COSENTINO, J.A.S.; SOUZA, J.L.G. de Forragem produzida a partir da palha da cana-de-açúcar - A  humanização da  produção de cana. 2007. Artigo em Hypertexto. Disponível em: <http://www.infobibos.com/Artigos/2007_3/humanizacao/index.htm>. Acesso em:


Publicado no Infobibos em 16/07/2007

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