A sanidade animal e as zoonoses em sistemas de agricultura familiar: um breve comentário

por Daniel Moura de Aguiar

Os sistemas de produção da agricultura familiar são programas que utilizam práticas de exploração pecuária próprias, inclusive algumas vezes com financiamento oficial. O tamanho dos rebanhos, por propriedade, é comumente reduzido e de dupla finalidade (rebanho misto), destinado à produção de carne e leite em pequena escala, principalmente para o consumo familiar e poupança econômica (reserva de patrimônio). Os animais são criados totalmente soltos (criação extensiva), tendo acesso contínuo a diversos tipos de ecossistemas, desde as florestas ao peridomicílio de humanos (Homem, 1999).

 

Conseqüentemente, as técnicas de criação acabam por diferir bastante daquelas praticadas nos grandes sistemas de produção e a convivência homem-animal torna-se mais estreita. O controle da saúde dos animais, além de garantir uma produção compatível com suas características zootécnicas, propicia uma fonte de alimento confiável. Ou seja, na agricultura familiar, cada animal doente, além de representar prejuízo econômico pela queda na produtividade, também significa risco para a saúde dos demais animais, e de humanos, em se tratando de zoonoses (Homem, 1999; Aguiar, 2004).

 

As doenças transmissíveis que acometem os animais domésticos, responsáveis pela queda de produção reprodutiva, pneumonias, enterites e outros, representam um capítulo de particular importância em medicina veterinária, pois comprometem os índices de produção e produtividade da atividade pecuária (Radostits et al., 2000).

 

A doença assume maior gravidade quando o agente etiológico apresenta potencial zoonótico, ou seja, além de afetar diversas espécies de animais domésticos e/ou silvestres, também é capaz de se instalar em seres humanos, podendo determinar infecções crônicas, de difícil tratamento e ocasionalmente fatais. Dentre estas causas, a brucelose, tuberculose e a leptospirose atendem a praticamente todos os requisitos anteriormente referidos e são infecções naturalmente transmissíveis dos animais ao homem, amplamente difundidas em todo o mundo (Vasconcellos et al., 1987).

 

A brucelose bovina é uma doença infecto-contagiosa de evolução crônica, causada pela bactéria Brucella abortus (Nielsen & Duncan, 1990), caracterizada por comprometer especialmente o sistema reprodutivo, causando principalmente abortamentos no terço final da gestação (Grasso & Cardoso, 1998). Na sua fase crônica, causa grandes perdas, sendo freqüentemente pouco detectada, principalmente em regiões tropicais, onde o seu efeito deletério sobre o rebanho bovino é desconhecido (Weidmann, 1991).

 

A infecção possui distribuição mundial e acarreta severos prejuízos econômicos nas criações de animais de produção, sendo motivo de sérias restrições comerciais, o que faz com que os países, onde a doença ocorre, estabeleçam programas para o seu controle e posterior erradicação. Os rebanhos bovinos são desvalorizados, pois estão sujeitos a surtos de abortamentos, com redução progressiva do rebanho pela queda de natalidade (Grasso & Cardoso, 1998). Além disso, apresenta importância no contexto de saúde pública, em virtude da possibilidade de infecção do homem (Vasconcellos et al., 1987).

 

Outra importante enfermidade é a tuberculose. É uma das doenças mais antigas de que se tem conhecimento, habitando entre nós desde os tempos pré-históricos. É uma doença infecciosa que evolui de forma crônica e é acompanhada de processos inflamatórios específicos, podendo infectar o homem e todos os mamíferos e aves (Corrêa & Corrêa, 1992). Segundo a Organização Mundial de Saúde em 1993, no Brasil, suspeitava-se que o M. bovis fosse responsável por aproximadamente 4.000 dos 80.000 casos de tuberculose registrados por ano (Leite et al., 2003). O bovino elimina o bacilo da tuberculose no leite, no ar expirado, no corrimento nasal, nas fezes, urina, leite, nas secreções vaginais e uterinas, e pelo sêmen (Radostits et al. 2000). Na maioria dos casos a transmissão de bovino para bovino é a de ocorrência mais freqüente, facilitando a disseminação e persistência do M. bovis na população.

 

A tuberculose no bovino é principalmente uma doença pulmonar, e as vacas podem transmiti-la através da rota aerógena. A aquisição da infecção devida ao M. bovis, por meio da inalação de aerossóis contendo o bacilo, pode ocorrer sobretudo em grupos ocupacionais de maior exposição à doença, como tratadores de rebanhos, ordenhadores e seus familiares, trabalhadores da indústria de carne (açougueiros, pessoal de matadouros e frigoríficos) e veterinários, além de membros da comunidade rural que vivem em estreito contato com seus animais (Abrahão, 1998).

 

A freqüência da infecção é mais alta em vacas leiteiras do que em bovinos de corte, porque sua vida econômica útil é mais prolongada, e estes animais apresentam um maior contato quando eles se reúnem para a ordenha (Acha & Szyfres, 2001). Animais criados em sistemas de manejo intensivo ou confinamento estão mais predispostos a desenvolver a doença. Para dificultar mais ainda, o leite de vacas tuberculosas não aparece alterado de forma visível quando a glândula mamária não está acometida, nem quando a enfermidade desta se encontra no começo.

 

Por esses motivos, a ocorrência de infecções humanas por M. bovis é maior nas áreas rurais devido a presença de rebanhos infectados (Moda et al., 1996). A infecção por M. bovis foi problema de saúde pública quando o leite não era pasteurizado, permitindo assim a ingestão do bacilo ao se beber leite de vacas doentes (Dib, 2005). Inicialmente, pensava-se na tuberculose bovina como uma doença de criança já que a doença envolvia tanto os linfonodos cervicais, como o trato intestinal ou as meninges. A entidade clínica, caracterizada pelo aumento e descarga de micobactérias dos linfonodos do pescoço era conhecida como escrófula (O' Reilly & Daborn, 1995).

 

Diferenças culturais na preparação e uso do leite afetam profundamente a transmissão da tuberculose bovina. Em muitas culturas, manteigas e cremes de leite são produzidos com leites não fervidos, tornando-se uma fonte de M. bovis. No mundo todo, a prática de se beber leite cru está associada com o hábito e o modo de vida da população rural e aumenta o risco de infecção, principalmente em crianças (Pritchard, 1988).

O governo brasileiro, sabendo da freqüência observada de casos de brucelose e tuberculose bovina, instituiu em 2001 o Programa Nacional de Controle e Erradicação da Brucelose e Tuberculose Animal (PNCEBT) com o objetivo de diminuir o impacto negativo desta zoonoses na saúde comunitária e de promover a competitividade da pecuária nacional.

 

A leptospirose bovina é uma doença infecto-contagiosa, de caráter zoonótico, relacionada a perdas econômicas nos animais devido à redução da produção láctea (Costa et al., 1998) e, principalmente, pelo comprometimento do desempenho reprodutivo dos rebanhos acometidos (Vasconcellos, 1993). No Brasil, a presença de animais reatores distribuídos por todos os Estados, deixa evidente a disseminação da leptospira, em maior ou menor ocorrência. A importância da leptospirose deve ser considerada, pois a doença em rebanhos bovinos é retratada com queda da produtividade, evidenciados através de sintomas muitas vezes evidentes no desempenho reprodutivo da propriedade (Favero, 2000).

 

Todas as espécies animais e os homens são sensíveis às Leptospiras. As regiões tropicais e subtropicais são mais favoráveis que as temperadas para a ocorrência da leptospirose, visto que o gênero Leptospira, pode sobreviver por longos períodos em ambientes úmidos, o que aumenta o risco de exposição e infecção de animais susceptíveis (Acha & Szyfres, 1986).

 

É provavelmente, uma das zoonoses de maior preocupação em todo mundo. O homem usualmente se infecta pelo contato com a água ou mesmo com o solo contaminado por urina de roedores, carcaças e tecidos de animais infectados. Trabalhadores de propriedades rurais, pescadores, magarefes, veterinários, mineradores e trabalhadores de esgotos apresentam maiores risco de infecção, o que caracteriza a leptospirose como doença ocupacional (Plank & Dean, 2000).

 

A profilaxia da leptospirose bovina envolve a adoção de medidas como controle de roedores, eliminação do excesso de água do ambiente e imunização sistemática dos animais, com vacinas inativadas que contenham os sorovares de leptospiras presentes na região. O seu controle é necessário para prevenir doença clínica, perdas econômicas e minimizar o risco de infecção humana, dependendo de diversas etapas que devem ser consideradas (Guimarães et al., 1982/1983).

 

O desmatamento, e a ocupação do homem em novas áreas, tendem a originar um ecossistema constituído de diferentes biocenoses, que podem influenciar a difusão de doenças transmissíveis. Nas regiões de colonização recente, o contato dos humanos com animais silvestres é mais comum e freqüente do que se pensa, face aos hábitos de caça, da adoção de animais silvestres como estimação e da presença de animais sinantrópicos (Homem et al., 2001). Diante do exposto, estas três doenças vêm de encontro com a realidade de uma população em crescimento, aquelas que desenvolvem agricultura familiar, no estado de São Paulo representado pelas famílias favorecidas pelos assentamentos.

 

Nesse sentido, o Pólo Regional da Alta Sorocabana, com sede em Presidente Prudente, vem adequando sua infra-estrutura laboratorial para que seja capaz de atender os vários assentamentos presentes no oeste do estado de São Paulo, atendendo dessa forma esta importante demanda regional. Adicionalmente, a melhora dos aspectos sanitários dessas propriedades, também favorecerá a cadeia produtiva dos programas de assentamento local, que é baseada na produção leiteira.

 

Literatura consultada

Acha, P.N. & Szyfres, B. Zoonosis y enfermedades transmisibles comunes al hombre y a los animales. 2o ed.  OPAS, Washington, p.989, 1986.

 

Abrahão, R. M. C. M. Tuberculose humana causada pelo Mycobacterium bovis: considerações gerais e a importância dos reservatórios animais. 1998. 273 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.

 

Brasil. Ministério da Agricultura, agropecuária e abastecimento. Defesa Sanitária Animal. Decreto no 2 de 16 de Janeiro de 2001. Programa Nacional de Controle e Erradicação da Brucelose e Tuberculose Animal. Brasília, 2001.

 

Costa, M.C.R; Moreira, E.C.; Leite, R.C.; Martins, N.R.S. Avaliação da  imunidade cruzada entre Leptospira hardjo e L. wolffi. Arquivos Brasileiros de Medicina Veterinária e Zootecnia, v.50, n.1, p. 11-17, 1998.

 

Corrêa, W.M. & Corrêa, C.N.M. Enfermidades infecciosas dos mamíferos domésticos. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Medsi, 1992, p. 261-275.

 

Dib, C. C. Utilização de uma técnica rápida para o isolamento de Mycobacterium bovis a partir de amostras de leite experimentalmente inoculadas. 115p. Dissertação – Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

 

Favero, A.C.M. Estudo retrospectivo dos exames sorológicos de leptospirose realizados pelo laboratório de zoonoses bacterianas da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo, no período de 1984 a 1997. 115p. Dissertação – Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia. Universidade de São Paulo.

 

Grasso L.M.P.S. & Cardoso, M.V. Brucelose bovina. Biológico, v.60, n.1, p.71-79, 1998.

 

Guimarães, M.C., Côrtes, J.A., Vasconcellos, S.A., Ito, F.H. Epidemiologia e controle de leptospirose em bovinos. Papel do portador e seu controle terapêutico. Comunicação Científica da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo, v.6-7, p.21-34, 1982/1983.

 

Homem, V.S.F. Brucelose, leptospirose e tuberculose em Uruará, PA, município da amazônia oriental. Estudo da população humana e animal 1999. 76p. Dissertação Departamento de Medicina Veterinária Preventiva e Saúde Animal – Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia, Universidade de São Paulo.

 

Leite, C.Q.F.; Anno, I.S.; Leite, S.R.A.; Roxo, E.; Morlock, G.P.; Cooksey, R.C. Isolation and identifaction of Mycobacteria from livestock specimens and milk obtained in Brazil. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, v. 98, n. 3, p. 319-323, 2003.

 

Moda, G.; Daborn, C.J.; Grange, J.M.; Cosivi, O. The zoonotic importance of Mycobacterium bovis. Tubercle and Lung Disease, v. 77, n. 1, p. 103-108, 1996.

 

Nielsen, K. & Duncan, R. Animal brucellosis. Boca Raton: CRC Press, 1990, 453p.

 

O' Relly, L.M. & Daborn, C.J. The epidemiology of Mycobacterium bovis infections in animals and men: a review. Tubercle and Lung Disease, v. 76, p. 1-46, 1995. Suplement 1.

Plank, R., Dean, D. Overview of the epidemiology, microbiology, and pathogenesis of Leptospira spp. in humans. Microbes and Infection. v.2, n.10, p.1265-1272, 2000.

 

Pritchard, D.G. A century of bovine tuberculosis 1888-1988: conquest and controversy. Journal of Comparative. Pathology, v. 99, n. 4, p. 357-396, 1988.

 

Radostits, O.M.; Gay, C.C.; Blood, D.C.; Hinchcliff, K.W. Veterinary Medicine, 9o ed. W.B. Saunders, 2000, p.1877

 

Vasconcellos, S.A.; Ito, F.H.; Côrtes, J.A. Bases para a prevenção da brucelose animal. Comunicação Científica da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo, v.11, n.1, p.25-36, 1987.

 

Weidmann, H. Survey of now avaliable for combatting brucellosis in cattle production in the tropics. Animal Research and Development. v.33, p.98-111, 1991.
 

Origem: Apta Regional - www.apta.sp.gov.br


Daniel Moura de Aguiar é Pesquisador Científico da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios - APTA - Pólo Regional da Alta Sorocabana.

Contato: danmoura@aptaregional.sp.gov.br.



Reprodução autorizada desde que citado o autor e a fonte


Dados para citação bibliográfica(ABNT):

AGUIAR, M de. A sanidade animal e as zoonoses em sistemas de agricultura familiar: um breve comentário. 2007. Artigo em Hypertexto. Disponível em: <http://www.infobibos.com/Artigos/2007_4/sanidade/index.htm>. Acesso em:


Publicado no Infobibos em 29/11/2007

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