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Agricultores guardiões de sementes e o desenvolvimento in situ de cultivares crioulas

 

Gilberto A. Peripolli Bevilaqua
Irajá Ferreira Antunes

 

A posse e o domínio das sementes representaram a mudança do ser humano, nos seus primórdios, de coletor e caçador para agricultor sedentário. Neste processo, o ser humano foi dominando técnicas de domesticação de espécies vegetais, selecionando e criando cultivares mais adaptadas ao seu ambiente. O processo de modernização da agricultura causou mudança significativa na prática dos agricultores, de selecionar plantas e conservar sementes crioulas. A recuperação deste patrimônio cultural diz respeito à própria preservação da biodiversidade existente no planeta e a coevolução de sistemas agrícolas.

 

Os agricultores familiares e suas entidades representativas são responsáveis pela manutenção de um patrimônio importantíssimo para a humanidade, por meio da conservação das sementes de cultivares crioulas, apesar do grande avanço da agricultura moderna. Assim, a necessidade de recuperá-lo diz respeito à própria preservação da biodiversidade existente no planeta.

 

A taxa de utilização de sementes melhoradas de culturas, como feijão, tem se mantido em valores muito baixos. Esse fato indica que a maioria dos agricultores familiares utiliza como sementes, grãos com qualidade fisiológica e sanitária às vezes comprometida. Na prática, o que se observa é que estes adquirem  sementes e passam a multiplicá-la para si, por vários anos seguidos. Entretanto, ao longo dos anos, devido à falta de informações, as cultivares vão perdendo qualidade fisiológica e genética. É sabido que o uso de sementes de baixa qualidade tem se constituído num entrave para o aumento da produtividade das culturas.

 

O presente trabalho visa relatar a articulação da rede de guardiões de sementes e as atividades desenvolvidas de caracterização de cultivares crioulas e técnicas básicas de seleção de plantas, de acordo com as características específicas de cada local, objetivando desenvolver novas cultivares.

 

Construção do processo

Na execução, são realizadas reuniões de resgate e planejamento participativo com técnicos, lideranças e agricultores. A discussão da co-evolução de melhores sistemas e do melhoramento de cultivares resgatadas conduz a construção de novas propostas de pesquisa e desenvolvimento. Nesta fase cada entidade define agricultores que são os guardiões das sementes pela natureza de suas atividades na comunidade.

 

As sementes coletadas são avaliadas de forma participativa, sendo feita a caracterização quanto à história da cultivar, características morfológicas, resistência a doenças, aptidão climática e cullinária e produtividade. Coleções de cultivares crioulas e conhecimento circulam entre os agricultores familiares nas diversas regiões, propiciando a diversificação e eficiência dos sistemas produtivos e a seleção de cultivares e sistemas com melhor desempenho. Aquelas que se destacam seguem vários caminhos: são multiplicadas e disponibilizadas aos agricultores familiares, servem de fonte para o melhoramento genético, ou passam por um processo de seleção durante um período e, então, são disponibilizadas as instituições dos agricultores.

 

Em cada núcleo de trabalho, junto com os guardiões, são realizadas atividades de capacitação dos agricultores, quanto aos cuidados na produção e acondicionamento de sementes, além da conservação da identidade genética das cultivares, bem como é constituído um banco de sementes, com um técnico responsável. O mecanismo delineado implica no recebimento por parte de agricultores familiares de sementes de cultivares crioulas e a posterior devolução ao responsável local do Banco de Sementes, o dobro da quantidade de semente recebida. Esta semente é, então, redistribuída a outros agricultores com igual responsabilidade, de modo a tornar o sistema auto-suficiente.

 

As espécies inicialmente trabalhadas são: feijão, milho, feijão-vigna, amendoim, cucurbitáceas, entre outras. O cultivo e acondicionamento das sementes é feito com  métodos de base ecológica, ou sistemas de produção que envolvam a minimização do uso de insumos.

 

Resultados alcançados

         No período compreendido entre 2004 e 2007, foram distribuídas mais de duas toneladas de sementes das várias culturas adquiridas com recursos de projetos e/ou oriundas da Embrapa Clima Temperado, o que resultou, com a devolução dos agricultores, em quatro toneladas redistribuídas, atingindo diretamente mil famílias no Rio Grande do Sul. Aproximadamente 400 coleções das várias espécies circularam no Estado propiciando a seleção de novos materiais e a diversificação dos sistemas produtivos.

 

Como resultados qualitativos, pode-se observar a melhoria da qualidade das sementes utilizadas, evitando-se a utilização de grãos para a semeadura das lavouras, gerando melhores colheitas; a melhoria da qualidade do solo, pelo cultivo de plantas recuperadoras de solo como feijão-miúdo, centeio e aveia-preta e o aumento na disponibilização de sementes de qualidade para a agricultura familiar.

 

O intercâmbio de tecnologia e informações entre pesquisadores, agricultores e técnicos constitui-se em prioridade e o trabalho propiciou a capacitação de 350 agricultores e técnicos sobre a seleção e a manutenção da qualidade das sementes. O apoio na organização de 10 feiras de sementes crioulas em diversos municípios tem prestado importante papel na divulgação do tema e como fonte de disseminação e troca de sementes.

 

Em evento com diversas entidades que trabalham com sementes crioulas foram discutidos indicativos fundamentais, no intuito de dotar as sementes crioulas de características que possibilitem elevá-las às mesmas condições de que hoje são dotadas sementes oriundas de instituições públicas ou privadas de pesquisa, de forma a melhor amparar a agricultura familiar, que hoje depende em muito deste germoplasma, podendo-se destacar:

        Formar uma Rede de Guardiões de Sementes, bem como das organizações que trabalham com sementes crioulas.

        Criar incentivos à manutenção ex-situ de cultivares, pela formação de Bancos de Sementes, e principalmente in-situ

        Incluir entre os incentivos, um sistema de recompensa àqueles que atendam os requisitos que caracterizam um guardiã de sementes.

        Conduzir o mapeamento das mais diversas sementes crioulas, nos mais diversos locais, levando em conta levantamentos já realizados por ATERs, ONGs e agricultores e suas organizações.

        Realizar treinamentos direcionados à capacitação dos segmentos da agricultura familiar e seus órgãos técnicos, quanto à manutenção do germoplasma crioulo, principalmente  sua variabilidade e pureza.

        Promover a criação de amostras de sementes crioulas, em particular naqueles municípios com vocação agrícola e em que existam grupos ligados à agricultura familiar.

        Ajustar a legislação atual de modo a que aqueles que adotam cultivares crioulas, possam beneficiar-se das políticas de crédito e seguro agrícola.

        Estabelecer mecanismos que impeçam a contaminação de cultivares crioulas com genes existentes em cultivares transgênicas, à luz de exemplos já reportados na literatura internacional - a conjugação deste com o item 2, pode levar à criação de zonas de exclusão.

        Executar um monitoramento gradual do germoplasma crioulo nacional que se encontra na posse dos guardiões de sementes, no intuito de detectar possíveis contaminações com gemoplasma geneticamente modificado.

 

Conclusão

A manutenção e o livre intercâmbio de sementes de cultivares crioulas da agricultura familiar, como fonte de germoplasma e mais particularmente de genes, representa uma estratégia fundamental no desenvolvimento de cultivares mais produtivas e resistentes a diferentes tipos de estresses, de diversas espécies. É de extrema importância o desenvolvimento de trabalhos de pesquisa participativa para avaliar o potencial das cultivares crioulas, permitindo que estas sejam investigadas sob a ótica de sistemas de produção de base ecológica.

 

Para generalização do trabalho, algumas medidas oficiais devem ser discutidas como a criação de incentivos à manutenção in situ da biodiversidade, com um sistema de recompensa àqueles que atendam os requisitos que caracterizam um guardião de sementes. Futuramente deverá ser ajustada a legislação atual de modo que agricultores que adotem cultivares crioulas, possam beneficiar-se das políticas de crédito e seguro agrícola. Algumas das limitações observadas dizem respeito a contaminação de cultivares crioulas com genes de cultivares transgênicas, o que aponta na criação de zonas de exclusão, principalmente em plantas alógamas, e a adoção da Ata de 1991 da UPOV, que impede a livre circulação de sementes.

 


Gilberto Antonio Peripolli Bevilaqua possui graduação em Agromomia pela Universidade Federal de Santa Maria (1986), mestrado em Ciência e Tecnologia de Sementes pela Universidade Federal de Pelotas (1993) e doutorado em Ciência e Tecnologia de Sementes pela Universidade Federal de Pelotas (1996). Atualmente é pesquisador A da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - Embrapa Clima Temperado. Tem experiência na área de Agronomia, com ênfase em Produção e Beneficiamento de Sementes, atuando principalmente nos seguintes temas: Produção de sementes, variedades crioulas, feijão, plantas medicinais e capacitação
CVLATTES: http://lattes.cnpq.br/3465413891571124
Contato: bevilaq@cpact.embrapa.br

 

Irajá Ferreira Antunes possui graduação em Bacharelado em Direito pela Universidade Federal de Pelotas (2001), graduação em Agronomia pela Universidade Federal de Pelotas (1969), mestrado em Agronomy - University of Illinois (1978) e doutorado em Ciências Biológicas (Biologia Genética) pela Universidade de São Paulo (1986). Atualmente é Pesquisador III da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, consultor "ad hoc" do Conselho Nacional de Pesquisas, foi membro da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança Ctnbio de 2003 a 2005, é presidente da Comissão Interna de Biossegurança da Embrapa Clima Temperado, Presidente da Comissão Estadual de Pesquisa de Feijão do Rio Grande do Sul e consultor "ad hoc" da Universidade Federal de Santa Maria. Tem experiência na área de Agronomia, com ênfase em Melhoramento Vegetal, atuando principalmente nos seguintes temas: Phaseolus vulgaris, melhoramento, germoplasma crioulo, resistência a doenças, melhoramento participativo e registro de cultivares.



Reprodução autorizada desde que citado a autoria e a fonte


Dados para citação bibliográfica(ABNT):

BEVILAQUA, G.A.P.; ANTUNES, I.F.  Agricultores guardiões de sementes e o desenvolvimento in situ de cultivares crioulas. 2008. Artigo em Hypertexto. Disponível em: <http://www.infobibos.com/Artigos/2008_4/guardioes/index.htm>. Acesso em:


Publicado no Infobibos em 16/10/2008

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