Infobibos - Informações Tecnológicas - www.infobibos.com

Manipulação da composição química do milho: impacto na indústria e na saúde humana*

Maria Cristina Dias Paes

Introdução

A composição química do milho confere aos seus derivados importantes funções nutricionais e tecnológicas, sendo a manipulação desta composição direcionada a tornar ainda mais efetivas estas propriedades, tanto do ponto de vista da saúde humana, como no aspecto de funcionalidade e do valor econômico.

 

Nas últimas décadas houveram avanços significativos no entendimento da composição dos cereais, tendo sido o milho vastamente estudado e melhorado geneticamente para atender ou otimizar os seus diversos usos finais, tanto pela indústria de alimentos, a exemplo das moageiras, aos produtos das indústrias de alta tecnologia, como as indústrias farmacêuticas, de pneus, papéis, adesivos, filmes e embalagens biodegradáveis. Desta maneira, a qualidade física e química dos grãos e os processos industriais utilizados para a produção destes produtos sofreram grande influência, tornando possível a geração de novos materiais ou de produtos com melhor qualidade, resultando na conceituação do milho como matéria prima de alto valor. Conhecer as manipulações já alcançadas na composição química do milho e aquelas em desenvolvimento torna-se essencial a todos os profissionais envolvidos na geração de novos cultivares e na elaboração de produtos com valor agregado a partir de culturas agrícolas consideradas commodities.

 

  Anatomia e composição química do milho

Os grãos do milho são geralmente amarelos ou brancos, podendo apresentar colorações variando desde o preto até o vermelho. Considerado o maior grão entre os demais cereais, o peso individual do grão varia em média de 250 a 300mg e sua composição em base seca é de 61-78% de amido, 6-12 proteínas, 2-4% fibra (a maioria resíduo detergente neutro), 3-6% de óleo e 1-4% minerais, distribuídos de forma heterogênea nas quatro principais estruturas físicas que formam o grão: endosperma, gérmen, pericarpo (casca) e ponta. Portanto, cada fração se distingue na composição química e também na organização dentro do grão (Tabela 1).

 

Tabela 1. Percentagem do constituinte total indicado nas estruturas físicas específicas do grão de milho.

Fração

% grão

Amido

Lipídeos

Proteínas

Minerais

Açúcares

Fibras ou conteúdo celular

 

 

% da parte (base seca)

Endosperma

82

98

15,4

74

17,9

28,9

 

Gérmen

11

1,3

82,6

26

78,4

69,3

12

Pericarpo

5

0,6

1,3

2,6

2,9

1,2

54

Ponta

2

0,1

0,8

0,9

1,0

0,8

7,0

Fonte: Adaptado de Watson (2005)

 

O endosperma representa aproximadamente 83% do peso seco do grão e concentra 75% da proteína e 98% do total de carboidratos, dos quais 86 a 89% é amido. O gérmen, que representa 10-14% do peso do grão, contém aproximadamente 26% da proteína, 83% dos lipídeos e quase a totalidade das vitaminas, minerais e açúcares do grão. O pericarpo, cujo peso equivale a 5 a 6% do peso do grão, concentra 55% das fibras do grão do milho. A ponta é a menor fração, correspondendo a apenas 0.8% do peso do grão, mas concentra 7% das fibras do grão.

 

Endosperma

No endosperma, o amido é organizado nas células na forma de grânulos, sendo constituído por dois polímeros de glucose, a amilose e a amilopectina. Sendo bastante distintas na estrutura molecular, a primeira destaca-se pela sua cadeia longa e não ramificada, enquanto a segunda é altamente ramificada. Em geral o amido do milho é composto por 75% amilopectina e 25% amilose, existindo mutantes naturais cuja composição chega a 99% amilopectina (seroso-waxy) ou até 50% amilose (amilose­extender). Estudos mais recentes têm indicado ainda variações no comprimento e número de ramificações da amilopectina em milhos exóticos, com impactos importantes nas propriedades funcionais.

 

As proteínas presentes no endosperma são principalmente de reserva (70%), identificadas como prolaminas (zeínas) dada à solubilidade das mesmas em álcool. Com base na composição aminoacídica e estrutura espacial, as zeínas são classificadas em quatro frações distintas: alfa, beta, gama e delta. Nas células do endosperma de milhos normais, estas proteínas são contidas em corpos protéicos, estruturas circulares de diâmetro médio 2µm, formados por uma região central rica em delta e gama-zeína, circundada por alfa­zeína, a fração presente em maior abundância. Outras proteínas, geralmente envolvidas em processos metabólicos, a exemplo da produção do amido, estão presentes no endosperma e contribuem para o total de proteínas do grão. Geralmente estas proteínas estão presentes nos grânulos de amido e em outras estruturas celulares.

 

Na camada de aleurona e no endosperma vítreo, estão também presentes os carotenóides, substâncias lipídicas que conferem a cor aos grãos de milho. Zeaxantina, luteína, beta-criptoxantina, alfa-caroteno e beta-caroteno são os principais carotenóides presentes nos grãos, embora a distribuição destas substâncias em cultivares de milho variam significativamente. Têm sido reportadas concentrações de carotenóides totais variando de 19 a 35ug/g, com percentuais de xantofilas (zeaxantina+luteína) correspondendo em média a 53% deste total. Em geral, o total de carotenóides nos grãos correlacionam diretamente com a cor amarelada, embora esta correlação não seja estatisticamente significante para o grupo dos carotenos.

 

Gérmen

No gérmen concentra-se quase a totalidade dos lipídeos (óleo e vitamina E) (83%) e dos minerais (78%) do grão, além de importantes quantidades de proteínas (26%) e açúcares (70%). Esta fração é a única viva do grão e onde estão presentes as proteínas classificadas segundo solubilidade em solventes como albuminas, globulinas e glutelinas, que diferem significativamente em composição e organização molecular daquelas encontradas no endosperma, e, por conseguinte, diferindo das primeiras em qualidade nutricional e propriedades tecnológicas. As proteínas de reserva, encontradas em maior abundância no grão de milho, são ricas nos aminoácidos metionina e cisteína, mas são pobres em lisina e triptofano. Por outro lado, as proteínas de reserva possuem quantidades elevadas dos aminoácidos glutamina, leucina, alanina e prolina, que conferem alta hidrofobicidade ao resíduo protéico extraído do endosperma.

 

Os lipídeos do grãos, especialmente os triglicerídeos, estão organizados em corpos oleosos, contendo uma membrana fosfolipídica, combinada com proteínas chamadas oleosinas. Os triglicerídeos é comumente considerado o óleo presente no gérmen do milho, cuja composição distingue-se dos outros óleos vegetais (Fig 1) quanto aos percentuais de ácidos graxos saturados (13%), monoinsaturados (29%) e  polinsaturados (58%), sendo o principal componente o ácido graxo linoléico (62%), seguido por ácido oléico (24%), ácido palmítico (11%), ácido esteárico (2%) e ainda um pequeno percentual do ácido graxo linolênico (0.7%), o primeiro e o último considerados essenciais à nutrição humana e a alguns animais, dada a incapacidade de síntese dos mesmos pelo organismo.


Figura 1.
Composição química de alguns óleos vegetais (Adaptado de JAOCS 1985 e American Heart Association 2004)

No gérmen encontram-se concentrados os tocoferóis, dos quais alfa-tocoferol é o mais prevalente. Estas substancias  são fontes de vitamina E e potentes antioxidantes possuindo importantes funções fisiológicas para o organismo humano.

 

Pericarpo e ponta

O pericarpo representa em média 5% do grão, sendo a fração que protege as outras estruturas do grão da elevada umidade do ambiente, insetos e microrganismos. As camadas de células que compõe esta fração são constituídas de polissacarídeos do tipo hemicelulose (67%) e celulose (23%), embora também contenha lignina (0.1%).

A ponta é a menor estrutura, respondendo por 2% do grão,  e é responsável pela conexão do grão ao sabugo, sendo a única área do grão não coberta pelo pericarpo. Sua composição é essencialmente de material lignocelulósico.

 

Manipulações na composição química do milho e suas implicações

Muito embora as manipulações na composição química do milho influenciem as propriedades físicas do grão, tais como o formato, a vitreosidade, a dureza e a cor, são nos subprodutos que estas alterações promovem resultados mais significativos. As manipulações genéticas, através da seleção e do melhoramento tradicional, ou através da transformação gênica, têm gerado milhos com grãos de características químicas e funcionais bastante distintas, atribuindo diferentes formas para utilização final. Dentre estes destacam-se:

a) Alto teor de óleo

Cultivares de milho com até 8% de óleo são produzidas em países desenvolvidos como um produto de alto valor energético para a alimentação de aves e também de suínos. Materiais com estas características são também comercializadas em mercados onde existem sistemas de confinamento de bovinos para a produção de carnes especiais, a exemplo do sistema japonês. Em geral os materiais com alto teor de óleo no grão possuem gérmen de tamanho aumentado, o que resulta em uma maior concentração e melhor qualidade da proteína do grão, visto que o perfil de aminoácidos do gérmen é nutricionalmente superior ao das proteínas do endosperma. Esta manipulação favorece também a indústria de óleo de milho, aumentando o rendimento da extração em até 100%. O único inconveniente de produção destes materiais é o rendimento inferior destes cultivares em relação aos materiais comerciais, o que restringe a produção em mercados onde a inexiste bonificação.

b) Qualidade protéica superior

Híbridos e variedades de milho com superior qualidade protéica foram desenvolvidos a partir do mutante opaco-2, cujas concentrações dos aminoácidos essenciais lisina e triptofano, os dois aminoácidos limitantes em milho, apresentam-se significativamente aumentados. Estes materiais, denominados quality protein maize (QPM), foram desenvolvidos para utilização nas dietas de populações consumidoras de milho em grandes volumes, representando, portanto, uma importante contribuição à prevenção da desnutrição protéico-calórica, problema nutricional prevalente nestas populações. Embora os teores de lisina e triptofano relatado para os materiais QPM sejam menores aos teores dos mesmos aminoácidos no milho opaco-2, as quantidades ainda causam impacto na qualidade protéica. Vários estudos em animais e humanos realizados nas décadas de 1980 a 2000 comprovaram a superioridade nutricional dos derivados de milho QPM em relação ao milho normal, mesmo quando estes produtos tenham sido processados.

c) Óleo de milho com elevado teor de ácido oléico

A modificação da composição de óleos vegetais tem sido dirigida à melhoria da qualidade nutricional e também da qualidade dos produtos originados do processamento destes óleos. Óleos vegetais classicamente não possuem colesterol e a razão de ácidos graxos polinsaturados:saturados é elevada, o que os caracteriza como de boa qualidade nutricional. Entretanto, os óleos com elevado teor de ácidos graxos insaturados são geralmente mais instáveis, devido às duplas ligações presentes nas estruturas dos ácidos graxos insaturados ou polinsaturados. Esta instabilidade é um fator determinante ao tempo de vida de prateleira do óleo e também durante o seu uso como nas frituras, ou nos próprios produtos fritos, porque a exposição ao oxigênio e ao calor favorece a degradação oxidativa do óleo. Produtos resultantes de degradação do óleo influenciam no sabor e também na qualidade nutricional do produto que contém estes produtos de degradação. Além deste aspecto, durante a produção de margarinas e outros produtos hidrogenados a partir de óleos vegetais, geralmente ocorre a formação das chamadas gorduras trans pela inversão das ligações cis, que ocorrem naturalmente nas ligações duplas da estrutura dos ácidos graxos insaturados. Estas gorduras trans ,embora ocorram naturalmente em produtos animais, apresentam efeitos deletérios à saúde humana, uma vez estão relacionadas ao aumento do HDL-colesterol, fator de risco para doenças cardiovasculares. Através da manipulação genética, milhos contendo óleo com teor aumentado do ácido graxo oléico (c18:1), vem a contribuir para a qualidade nutricional de derivados hidrogenados do óleo de milho e também na qualidade tecnológica do mesmo. Nestes materiais a concentração de ácido oléico chega a 50%, enquanto no milho normal estes teores variam de 28 a 37%, conferindo ao óleo de milho maior estabilidade à degradação oxidativa.

d) Amido com composição diferenciada

O amido de milho é utilizado tanto na sua forma natural após extração por processo úmido, como também nas formas modificadas quimicamente, rendendo amidos com várias propriedades a exemplo daqueles resistentes ao congelamento, aos meios ácidos ou alcalinos, solúvel em água, com gelatinização a frio etc. Todas estas propriedades, inclusive aquelas resultantes da manipulação química, dependem da estrutura encontrada naturalmente, e por este motivo a busca por amidos nativos com propriedades distintas tem sido constante no meio científico.

a. Alto teor de amilose

b. Alto teor de amilopectina

c. Propriedades reológicas distintas

e) Amido com maior facilidade de extração

A crescente demanda da indústria processadora de amido através moagem úmida por milho com teores normais de amido, proteína e óleo, porém com amido facilmente extraído tem influenciado a seleção de materiais com composição de endosperma diferenciado, cuja estrutura celular favoreça a extração do amido e a separação do mesmo no processamento convencional. Embora no mercado americano estes materiais já sejam disponíveis, no Brasil estes materiais ainda não estão sendo comercializados.

f) Perfil de proteínas modificado

Variações na composição das zeínas têm sido reportadas para milhos especiais, a exemplo dos milhos de alta qualidade protéica (QPM), nos quais a fração gama-zeína apresenta-se em quantidades aumentadas, enquanto o teor de alfa-zeína apresenta-se consideravelmente reduzido. Nestes materiais os corpos protéicos apresentam composição modificada e tamanho reduzido (~1µm diâmetro) quando comparados àqueles presentes nos milhos normais. Estas modificações conferem à proteína presente nos grits e farinhas de milho uma maior habilidade para reagir especialmente através da agregação, influenciando a textura e a hidratação de produtos produzidos com estes derivados através da extrusão, favorecendo o tempo de vida de produtos como salgadinhos e cereais matinais, cuja textura é fator importante na definição da qualidade do produto pelo consumidor. Amostras de grits de milho identificadas como de qualidade de processamento superior em linha de produção de salgadinhos extrusados possuem perfil de zeinas significativamente diferente daquelas amostras consideradas de qualidade inferior.

Embora ainda não comercializados, os materiais com teores aumentados de metionina nos grãos já foram obtidos através da transformação gênica. Por estarem ainda em fase inicial de testes, não há resultados dos efeitos desta alteração na composição nutricional dos grãos destes transgênicos. A finalidade deste material é a alimentação de aves, geralmente baseada no milho como elemento principal. Como as aves possuem necessidade aumentada de metionina comparada aos humanos, o aumento deste aminoácido é vantajoso do ponto de vista econômico. Entretanto, como o aumento de um determinado aminoácido geralmente é acompanhado da redução de outro, por conseguinte, apenas o screening do perfil aminoácidico destes milhos modificados poderia definir ganhos ou perdas no valor nutricional destes materiais comparado aos milhos normais.

Conclusão

Alterações na composição química de alimentos e uma forma de atender as demandas tanto pelo consumidor direto como pela industria que utiliza estas fontes como matéria prima. Novos usos tem surgido com os avanços tecnológicos, requerendo mais investimentos nos estudos de coleções de germoplasma exóticos, que ainda são pouco explorados. A identificação de fontes com propriedades químicas e físicas distintas podem resultar em menores custos em processos industriais, valorando culturas agrícolas consideradas commodities.

 

 * Artigo publicado originalmente no IX Seminário Nacional de Milho Safrinha - Dourados-MS - 2007


Maria Cristina Dias Paes possui graduação em Nutrição pela Universidade Federal de Viçosa (1988), mestrado em Food Science And Human Nutrition - Colorado State University (1998) e doutorado em Food Science And Human Nutrition - Colorado State University (2002). Atualmente é pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - Embrapa Milho e Sorgo, Sete Lagoas, MG e colaborador nas pesquisas do Departamento de Nutrição da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Tem experiência na área de Ciência e Tecnologia de Alimentos, com ênfase em qualidade nutricional e tecnológica de grãos, atuando principalmente nos seguintes temas: usos do milho na industria e na alimentação humana, novos usos de produtos agrícolas utilizando a nanotecnologia, milho, biopolímeros, fibras, extrusão, milhos especiais.
CVLATTES http://lattes.cnpq.br/9287991917094339

Contato: mcdpaes@cnpms.embrapa.br



Reprodução autorizada desde que citado a autoria e a fonte


Dados para citação bibliográfica(ABNT):

PAES, M.C.D.  Manipulação da composição química do milho: impacto na indústria e na saúde humana. 2008. Artigo em Hypertexto. Disponível em: <http://www.infobibos.com/Artigos/2008_4/milho/index.htm>. Acesso em:


Publicado no Infobibos em 18/10/2008

Veja Também...