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Conservação das Reservas Legais (RL) e Áreas de Preservação Permanente (APP): passos importantes para a transição agroecológica

 

por Joel Henrique Cardoso

 

A idéia que motiva escrever este texto está sustentada no fato de que os processos de transição agroecológicos avançam na medida em que os ecossistemas naturais são conservados.

Para defender essa idéia, inicia-se por esclarecer que a transição é um processo gradual de mudanças. Como exemplo, pode-se citar no campo da química os momentos de reação que vão transformando uma determinada substância em outra, na física, as distintas fases da matéria que vai se alterando na medida em que é submetida a determinadas condições ambientais; nas ciências humanas, de forma genérica, a transição significa a coexistência de distintas formas de organização da sociedade, com destaque para a transição política que está relacionada ao exercício do poder que passa de um grupo político a outro.

Na agricultura, o termo transição tem sido adotado com a mesma conotação de processo em transformação e está fortemente atrelado à dependência ou não de energias fósseis para produzir alimentos, fibras e combustíveis para as sociedades humanas.

Desde seu surgimento, há aproximadamente 10.000 anos, até os dias atuais, a agricultura foi sofrendo uma série de mudanças que tiveram suma importância para os estilos de vida das populações humanas, mas a mudança mais significativa ocorrida na agricultura foi a de caráter urbano-industrial, que se iniciou a partir das grandes descobertas científicas fundamentadoras das inovações tecnológicas, que tornaram possível a grande transformação das sociedades humanas. Este processo vem sendo implementado desde a metade do século XIX e continua a se expandir sobre vastas extensões do planeta.

Desde então, as agriculturas camponesas e indígenas vêm descrevendo um processo contínuo de transição de modelo produtivo, que paulatinamente é convertido de tradicional para urbano-industrial. Esse processo não ocorre de forma estanque, padronizada e unidirecional, como foi suposto em determinado momento histórico, mas não se pode negar que há uma tendência geral das formas de agricultura tradicional ceder em espaço a modelos tecnológicos mais próximos a lógica da industrialização, onde os meios de produção e conhecimentos utilizados na unidade produtiva dependem cada vez menos dos recursos locais.

Concomitante e antagônico ao processo de transição de uma agricultura tradicional camponesa para uma agricultura urbano-industrial, está o processo de transição de uma agricultura urbano-industrial para uma agricultura respeitosa com o ambiente. De forma geral, pode-se dizer que estas formas de agricultura priorizam a ecologização do sistema alimentar e de matérias primas, defendendo uma reorganização das sociedades humanas capaz de promover uma agricultura sustentável, ou seja, prevê-se o abandono de tecnologias dependentes de energias fósseis e insumos intensivos em capital para tecnologias pautadas prioritariamente no uso racional da energia solar e que utilizem o mínimo de insumos provenientes de fora da unidade de produção.

Por ser a agricultura uma atividade produtiva, com características particulares no que se refere a padrões tecnológicos, amplamente condicionada pelo ambiente e pela capacidade de adaptação dos organismos vivos manejados com o intuito de produzir alimentos, fibras e combustíveis, supõe-se que a observação dos ecossistemas naturais é um dos elementos chave para se conseguir promover processos de transição para uma agricultura mais respeitosa com o meio ambiente.

Aqui reside a grande importância do saber tradicional, que por meio da observação e experimentação empírica tem desenvolvido uma série de práticas e conhecimentos, que uma vez resgatados e adequados às necessidades dos sistemas de produção podem impulsionar o desenvolvimento e adaptação de técnicas, que promovam a transição para uma agricultura sustentável ou agroecológica.

O resgate do saber tradicional e a geração de novos conhecimentos adaptados à realidade local fazem da ciência uma instituição chave no processo de transição para a agricultura de base ecológica. A agroecologia é uma das correntes do movimento de agriculturas alternativas que mais tem se preocupado com a sistematização dos conhecimentos científicos, que promovem a transição para uma agricultura sustentável.

A agroecologia defende um perfil científico multidisciplinar e plural, que seja capaz de estabelecer um diálogo que supere as fronteiras metodológicas que foram sendo desenvolvidas pelas ciências para abordar os distintos fenômenos, se desprende da perspectiva egocêntrica enquanto instituição social e se pauta pela democratização do conhecimento, que deve servir e se submeter às tomadas de decisão das pessoas, enquanto comunidade de pares.

Apesar de haver um conjunto considerável de conhecimentos científicos sistematizados sobre os ecossistemas naturais, muitos dos agroecólogos repetem os métodos consagrados pela agronomia convencional, que estuda as espécies domesticadas em ambientes artificializados, sem se preocupar com a ecologia dos ecossistemas naturais. A ecologia dos ecossistemas naturais brasileiros tem muito que contribuir com o processo de transição agroecológica e nada mais apropriado nessa aproximação do que iniciar pela compreensão dos remanescentes de ecossistemas naturais, que estão presentes nas unidades produtivas, especialmente nos espaços protegidos por lei como são as Reservas Legais (RL´s) e Áreas de Preservação Permanente (APP´s).

A adequação ambiental em termos de conservação de RL´s e APP´s consiste em uma grande oportunidade para o movimento agroecológico brasileiro. Estas áreas são o ponto de convergência entre agronomia e a ecologia, cabendo aos agroecólogos chamar a atenção e esclarecer os agricultores sobre a importância do manejo das unidades produtivas para que essas áreas desempenhem serviços ambientais aos agroecossistemas. Não restam dúvidas que o processo de fragmentação e a pressão de seleção que esses ecossistemas têm sofrido precisam ser considerados por aqueles que compreenderem que estes espaços são molas propulsoras da transição agroecológica.

A manutenção e enriquecimento das RL´s e APP´s existentes nos agroecossistemas auxilia, de forma direta, os cultivos ali existentes e possibilita ao manejador astuto, uma série de interações positivas com suas plantas e animais. Entender como ocorre a dinâmica de populações dos ecossistemas naturais vai facilitar técnicos e agricultores a manejarem a vegetação espontânea nas áreas cultivadas. Não se está afirmando que esse conhecimento basta, mas ele encerra uma série de informações que podem ajudar na hora de tomar decisões quanto ao manejo dos cultivos.

Outra informação de grande relevância para os técnicos e agricultores que perseguem processos de transição agroecológica está relacionada as interações entre áreas naturais e áreas de cultivo. De forma genérica, sabe-se que os ecossistemas naturais elevam a biodiversidade e propiciam maior estabilidade aos ambientes cultivados. Dessa forma, ter áreas naturais próximas às áreas de cultivo amplia as oportunidades de interações positivas que podem ser incentivadas pelos manejadores.

As possibilidades simbiônticas são inúmeras, havendo aquelas de caráter abiótico como a proteção de ventos dominantes, produção de microclimas em função do controle de temperatura e umidade, fornecimento de sombra, regulação dos ciclos hidrológicos, contenção de chuvas e absorção de águas superficiais. Quanto às interações entre organismos vivos, estão os polinizadores que normalmente serão mais abundantes e presentes nas lavouras na medida em que estas estejam mais próximas aos ecossistemas naturais; também estão os inimigos naturais que se abrigam nos remanescentes ecossistêmicos e migram para as áreas de lavouras no momento em que as populações de suas presas crescem nos ambientes cultivados pelo homem.

A agroecologia deve trabalhar na perspectiva do enriquecimento das áreas de RL´s, APP´s e lavouras com espécies oriundas dos ecossistemas naturais. Outra prática bastante interessante consiste em conservar os remanescentes existentes e aproveitar seus propágulos para estimular a regeneração de espécies de interesse dos agricultores.

Na medida do possível, deve-se orientar os agricultores a implantar corredores de espécies nativas, para que ocorram os fluxos gênicos ao longo das áreas cultivadas, transcendendo aos limites da propriedade, o que tornará muito mais efetivo o papel de conservação dos ecossistemas naturais. A agroecologia confere maior sentido as exigências de manutenção das áreas de RL´s e APP´s, que deixam de ser vistas como uma obrigação do agricultor, para transformar-se em um elemento prático que facilita a transição e que serve como elemento pedagógico de educação ambiental no processo de construção de conhecimentos ecológicos.


Joel Henrique Cardoso possui graduação em Agronomia pela Universidade Federal de Santa Catarina (1997) e doutorado em Agroecologia, sociologia e desenvolvimento rural pela Universidade de Córdoba (2002). Atualmente é pesquisador ´a´ - Embrapa Clima Temperado. Tem experiência na área de Agronomia, com ênfase em Sistemas Agroflorestais, atuando principalmente nos seguintes temas: movimentos sociais, meio ambiente, agricultura familiar, ecologia florestal e desenvolvimento rural.
Contato:
joel@cpact.embrapa.br



Reprodução autorizada desde que citado a autoria e a fonte


Dados para citação bibliográfica(ABNT):

CARDOSO, J.H.  Conservação das Reservas Legais (RL) e Áreas de Preservação Permanente (APP): passos importantes para a transição agroecológica. 2008. Artigo em Hypertexto. Disponível em: <http://www.infobibos.com/Artigos/2008_4/preservacao/index.htm>. Acesso em:


Publicado no Infobibos em 02/12/2008

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