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Importância do monitoramento de linhagens celulares em estudos científicos

por Maria Judite Bittencourt Fernandes

O termo “culturas celulares” é utilizado para designar o crescimento de células in vitro. As células não estão mais organizadas em tecidos e crescem sob uma superfície como frascos plásticos, por exemplo, formando uma monocamada celular. A partir do cultivo inicial dessas células, originárias diretamente de um tecido animal, obtém-se uma cultura primária que, após a sua imortalização, isto é, a aquisição da capacidade de se multiplicar indefinidamente, torna-se uma linhagem celular contínua ou estabelecida.

As culturas celulares animais são utilizadas em várias áreas de pesquisa, sendo que as linhagens celulares contínuas oferecem um nível melhor de reprodutibilidade e, consequentemente, de padronização, quando comparadas às culturas primárias. Dentre as principais aplicações das linhagens celulares destacam-se o diagnóstico das infecções causadas por vírus, através do isolamento e posterior identificação desses agentes, a produção de vacinas e de reagentes biológicos, e testes para avaliação da toxicidade de biomateriais.

A obtenção e o uso de linhagens certificadas e de fontes autenticadas tornam-se assim de extrema importância. Essa autenticação ou caracterização resulta de um conjunto de dados como o crescimento populacional, citogenética, presença ou ausência de agentes contaminantes, suscetibilidade celular a diferentes amostras virais e identificação de espécies. Esta última pode ser feita por meio de testes imunológicos, cariótipo, análise de isoenzimas e, mais recentemente, através de técnicas moleculares.

A maioria dos laboratórios mantém diversas linhagens celulares e, por isso, acidentes de contaminação cruzada podem ocorrer durante o cultivo e manuseio de células, podendo então invalidar ou comprometer os resultados de pesquisa. Este problema pode ser resolvido não só por obtenção de linhagens certificadas, mas por procedimentos rigorosos de controle de qualidade e, principalmente, pela introdução, nos laboratórios que utilizam culturas celulares, de técnicas para análise de detecção de possíveis misturas de células destas diversas linhagens (contaminação interlinhagens).

A análise eletroforética de isoenzimas assim como toda eletroforese de proteína, corresponde à migração diferencial, em um suporte adequado (gel), de moléculas com cargas e tamanhos diferentes quando submetidas a um campo elétrico. Posteriormente, as isoenzimas são visualizadas através de coloração citoquímica do gel. As isoenzimas são formas moleculares múltiplas de uma mesma enzima que podem comportar-se diferentemente na eletroforese e são específicas para cada espécie animal e mesmo tecido e por isso pode ser utilizada tanto na caracterização da origem de espécies de linhagens como em possíveis contaminações.

O Laboratório de Biologia Celular, do Centro de P&D de Sanidade Animal do Instituto Biológico, introduziu, a partir de 1994, a caracterização de linhagens celulares. Um dos estudos foi a identificação de espécies de origem das linhagens por meio de análise eletroforética de isoenzimas. Recentemente, estudou-se a aplicabilidade desta técnica na contaminação entre as linhagens celulares utilizando protocolos experimentais de contaminação e diversas isoenzimas (lactato-desidrogenase, malato-desidrogenase, glicose-6-fosfato-desidrogenase e esterase).

A Figura 1 mostra um exemplo desses experimentos com uma análise eletroforética das isoenzimas da esterase aplicada em uma mistura experimental de duas linhagens celulares, A e B. Células da linhagem A foram misturadas nas proporções de 95%, 89%, 50%, 11% e 5% com a outra linhagem B em 5%, 11%, 50%, 89% e 95%, respectivamente. A linhagem celular A apresenta três bandas visíveis desta enzima (linha 1), enquanto a linhagem celular B apresenta duas (linha 7). A visualização de uma ou mais bandas de uma linhagem ou outra nesta mistura indica o sucesso da detecção da contaminação. Assim nas linhas 2 e 3 pode-se visualizar além das 3 bandas da linhagem A, uma das bandas da linhagem B que foi misturada em menor proporção. Nas linhas 5 e 6 além das 2 bandas da linhagem B, visualiza-se, só que com menor intensidade de coloração, as três bandas da linhagem A, que agora está em menor proporção. Na linha 4 que corresponde à metade de cada célula (50%) podem-se visualizar todas as três e duas bandas das linhagens A e B, respectivamente. Estes resultados conferem uma sensibilidade de 5% para esta técnica e isoenzima. Entretanto em estudos com outras isoenzimas, a sensibilidade foi de 10%. Estudos feitos também por outros autores mostraram uma sensiblidade de 10% desta técnica.

Fig.1 - Análise eletroforética das isoenzimas da esterase na mistura experimental de células A e B. Linha 1: 100%A; linha 2; 95%A/5%B; linha 3: 89%A /11%B; linha 4: 50%A/50%B; linha 5: 11%A /89%B; linha 6: 5%A/95%B; linha 7: 100%B.

Assim, uma possível contaminação interlinhagens pode ser identificada se representar pelo menos de 5 a 10% da população total celular, sendo importante o uso de duas ou mais isoenzimas para se obter resultados mais satisfatórios e confiáveis. Esta mesma sensibilidade de 10% também é verificada na técnica de DNA fingerprinting (técnica de eletroforese de fragmentos de DNA que também identificam indivíduos e espécies). Já a cariotipagem, isto é, a análise de cromossomos da espécie, apesar da sensibilidade maior, entre 1–5%, é considerada uma técnica laboriosa e inapropriada para uso em grande escala.

O monitoramento contínuo da pureza das linhagens celulares, para fins de controle de qualidade e fornecimento de resultados confiáveis e compatíveis entre laboratórios, é necessário e importante. Para tanto, a utilização da técnica de análise eletroforética de isoenzimas é perfeitamente aplicável. Ressalta-se, também, a grande importância da conscientização por parte da comunidade científica que utiliza estas linhagens celulares como ferramenta de trabalho. Futuramente, há proposta de ser requerido, aos autores que submetem artigos relatando o uso da técnica de cultura celular, um certificado de análise de contaminação cruzada celular ― CCC (cell cross-contamination) ― como já é exigido pela revista “In Vitro Cellular and Developmental Biology”.

Bibliografia consultada
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Origem: Instituto Biológico - www.biologico.sp.gov.br


Maria Judite Bittencourt Fernandes possui mestrado em Microbiologia e Imunologia pela Universidade Federal de São Paulo (1987). Atualmente é pesquisador científico do Instituto Biológico - Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de Sanidade Animal. Tem experiência na área de Microbiologia, com ênfase em Virologia, atuando principalmente nos seguintes temas: culturas celulares, caracterização de linhagens celulares através de suscetibilidade viral e de isoenzimas, vírus da doença infecciosa da bursa de galinha, atividade antiviral de produtos naturais e respectiva citotoxicidade.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/3745324607596139

Contato
: judite@biologico.sp.gov.br



Reprodução autorizada desde que citado a autoria e a fonte


Dados para citação bibliográfica(ABNT):

FERNANDES, M;J.B. Importância do monitoramento de linhagens celulares em estudos científicos. 2009. Artigo em Hypertexto. Disponível em: <http://www.infobibos.com/Artigos/2009_1/LinhagensCelulares/index.htm>. Acesso em:


Publicado no Infobibos em 05/03/2009

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