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Uma boa razão para acompanhar as aves de nossos parques

Vera Cecília Annes Ferreira
Alice Akimi Ikuno

Embora um grande número de agentes infecciosos ocorra especificamente em determinado táxon, uma variação na sua virulência pode permitir que eles ultrapassem a barreira imune entre as espécies e dessa forma passem a infectar animais e pessoas suscetíveis.

Frequentemente tomamos conhecimento do surgimento e da evolução de doenças emergentes, ou do ressurgimento de doenças que pensávamos estarem controladas ou em vias de desaparecimento. Essas doenças que podem ser transmitidas por meio de animais silvestres ou domésticos, nem sempre são sintomáticas, mas em determinadas situações chegam a provocar um surto e algumas vezes adquirem o caráter epidêmico. Como exemplo podemos citar a gripe aviária transmitida ao homem pelo vírus H5N1; a síndrome da imunodeficiência, cujo agente, o vírus da imunodeficiência (HIV) migrou do macaco para o homem; a Febre do Nilo, que é transmitida das aves, cavalos e outros animais para o homem pela picada de mosquitos infectados; e mais recentemente o vírus influenza de suínos, que foi transmitido ao homem e está com características epidêmicas.

Tucano-de-bico-verde, Ramphastos dicolorus.Parque do Instituto Biológico, São Paulo.
Foto: Alice A. Ikuno

Em avicultura, a ampliação dos sistemas produtivos conduz a uma concentração de animais em determinadas regiões e cria condições que favorecem o aparecimento e a transmissão de enfermidades, as quais na maioria das vezes provocam grandes prejuízos econômicos à atividade. Em decorrência disso, há um rígido acompanhamento sanitário dos aviários e fatores como barreiras físicas e naturais, o clima, as variações de temperatura e dos ventos, o sombreamento, o relevo da região e o acesso de animais silvestres são observados pelos avicultores para assegurar a sanidade dos plantéis.

O Instituto Biológico, em suas ações voltadas para assegurar a saúde animal, realiza o acompanhamento e o controle sanitário das principais cadeias de produção animal. Esse acompanhamento sanitário tem mostrado que no processo de adaptação, tanto os micro-organismos patogênicos como os comensais sofrem modificações e acumulam genes que, se por um lado reduzem a biodiversidade, por outro favorecem a sobrevivência no hospedeiro. Esse fato fica evidente em achados de nossos pesquisadores com isolados de E. coli provenientes de aves de postura, de água de dessedentação (local onde os animais saciam sua sede) e do ambiente de granjas, os quais nos últimos anos ampliaram o perfil de resistência a antibióticos em associação com alguns fatores de virulência(1). Uma das explicações para esses achados é que bactérias resistentes a determinados antibióticos podem também se mostrar resistentes a outros antibióticos que apresentam a mesma estrutura química ou o mesmo mecanismo de ação.

A maioria das E. coli patogênicas isoladas de aves é patogênica somente para aves e representa um baixo risco para o homem ou outros animais(2). Porém, as galinhas são suscetíveis à colonização pela E. coli O157:H7, que é uma bactéria agressiva também para o homem, apresenta multirresistência à antibióticos e causa séria hemorragia entérica que pode levar a óbito. Por essa razão, essa bactéria é intensamente monitorada pelos órgãos de vigilância sanitária e é considerada um dos principais agentes de toxi-infecções alimentares relacionados ao consumo de produtos de origem animal, principalmente em países como Estados Unidos e Japão.

Pica-pau-de-cabeça-amarela, Celeus flavescens. Parque do Instituto Biológico, São Paulo.
Foto: Alice A. Ikuno

Os pombos são um reservatório natural desse micro-organismo, eles podem potencialmente representar risco para o homem(3) e em bovinos existem relatos dessa infecção adquirida pelo contato com ganso selvagem portador(4).

A população de aves silvestres pode ainda servir como reservatório para outras bactérias patogênicas tais como Salmonella, Campylobacter, Listeria e Clamydia, além de patógenos zoonóticos emergentes. Essas aves quando infectadas podem disseminar a população de microrganismos e contaminar o ambiente ou a superfície das águas utilizadas para beber, para recreação ou para a irrigação.

A presença da E. coli não patogênica no ambiente (em particular na água e no alimento) sugere más condições de higiene. Essa bactéria é usada como um indicador importante, isso porque mudanças na resistência a antibióticos ou a aquisição e associação de fatores de virulência podem servir como um “sistema de alerta” para o aparecimento de bactérias potencialmente patogênicas.

A ampliação da região urbana envolve alteração e degradação de habitats naturais e reduz os refúgios da vida silvestre. Os processos de urbanização incluem a preocupação com o ambiente e a busca por qualidade de vida. Por essas razões, nas cidades, a sociedade tem procurado privilegiar o resgate da vegetação de áreas deterioradas e a inclusão de recortes de áreas verdes, o que tem atraído e aumentado a população de pássaros e aproximado a interface entre o habitat desses animais e o homem.

Um trabalho realizado no Instituto Biológico em colaboração com médicos veterinários do Ambulatório de Aves-FMVZ∕USP, com aves silvestres em quarentena, do Parque Ecológico do Tietê e de criadouros da região da Mata Atlântica, em São Paulo, mostrou que o traço de resistência a antibióticos manifesta-se na flora de E. coli comensal dessas aves. A totalidade das amostras analisadas foi resistente à lincomicina e em 63% delas esse fenótipo ocorreu associado à resistência à estreptomicina e um percentual menor (37%) à eritromicina. Percentuais decrescentes, porém significantes, ocorreram em amostras com resistência associada a três antibióticos (lincomicina, estreptomicina e eritromicina ou fosfomicina). Oito genes de virulência, encontrados com frequência na E. coli de aves de produção e no homem, foram também observados, com diferentes percentuais de associação, nos isolados de E. coli comensal desses animais silvestres. Um deles, marcador frequente em isolados virulentos, foi observado em 28% das amostras estudadas(5).

Essas informações reforçam a necessidade de identificação e acompanhamento dos micro-organismos encontrados em aves de produção e aves silvestres e de como eles se relacionam com isolados de outras fontes. Tais informações são componentes pró-ativos das ações de vigilância e permitirão um posicionamento adequado quanto às medidas de controle da infecção e a adoção de políticas públicas.

Os animais infectados com patógenos zoonóticos frequentemente têm infecção assintomática e o deslocamento desses animais pode ser um dos mecanismos para o estabelecimento de novos focos endêmicos de doenças a grandes distâncias. O lançamento de esgoto doméstico em rios, os dejetos urbanos e o contato com material descartado de criações de animais criam um reservatório ambiental de organismos resistentes que podem ser transferidos a uma grande variedade de animais de vida livre. Apesar de a luz solar e das altas temperaturas serem importantes fatores para a inativação de patógenos em águas de superfície, existe ainda uma variedade de agentes zoonóticos, como Campylobacter, Clostridium perfringens, Cryptosporidium e o vírus da hepatite, que podem sobreviver na água sem perder a infectividade e a patogenicidade.

Trabalhos sugerindo a possível contaminação veiculada por animais mostram que tratadores de animais, trabalhadores de abatedouros e veterinários têm uma significante porcentagem da E. coli multirresistente na microflora intestinal muito semelhante à encontrada nos animais, quando comparado com pessoas que não estão na mesma atividade.

As estratégias para reduzir os riscos dessas contaminações se baseiam na eliminação ou na diminuição da interação patógeno-hospedeiro, uma vez que o controle da doença no animal silvestre é na maioria das vezes inviável. Uma das possibilidades consiste no isolamento dos infectados, outra seria o controle do ambiente, que se faz por adoção severa de medidas de biossegurança e monitoramento das atividades e da circulação de pessoas.

Ainda pouco se sabe sobre a flora de microrganismos dos animais silvestres, mas o conhecimento sobre a vida silvestre em nosso meio está se ampliando. O Brasil tem mais de 1.700 espécies de aves e cerca de 10% delas são endêmicas. Esses valores mostram o tamanho do desafio tanto em termos de conservação como de escolhas quanto às medidas a serem adotadas para um convívio seguro.

Literatura consultada

1. Gama, N.M.S.Q.; Guastalli, E.A.L.; Paulillo, A.C. Isolamento de Escherichia coli de amostras de água de dessedentação de galinhas poedeiras. Arquivos do Instituto Biológico, São Paulo, v.71, p.245, 2004. Suplemento 1.

2. Caya, F.; Fairbrother, J.M.; Lessard, L.; Quessy, S. Characterization of the risk to human health of pathogenic Escherichia coli isolates from chicken carcasses. Journal of Food Protection, v.62, p.741-746, 1999.

3. Morabito, S.; Dell´Omo, G.; Agrimi, U.; Schimdt, H.; Karch, H.; Cheasty, T.; Capriole, A. Detection and characterization of Shiga toxin-producing Escherichia coli in feral pigeons. Veterinary Microbiology, v.82, p.275-283, 2001.

4. Synge, B.A. Recent epidemiological studies of verocytotoxin-producing E. coli O157 in cattle in Scotland. Cattle Practice, v.8, p.341-343, 2000.

5. Ikuno, A.A.; Gama, N.M.S.Q.; Guastalli, E.A.L.; Guimarães, M.B.; Ferreira, V.C.A. Characteristics of Escherichia coli isolates from wild fowl according to virulence genes and antibiotic resistance. 35. Conbravet, Gramado, RS, Disponível em: http://www.sovergs.com.br/conbravet2008/anais/cd/resumos/1269. Acesso em: 20 mai 2009.

Origem: Instituto Biológico - www.biologico.sp.gov.br


Vera Cecília Annes Ferreira concluiu o doutorado em Microbiologia e Imunologia pela Universidade Federal de São Paulo em 1979. Atualmente é Pesquisador Cientifico VI do Instituto Biológico, Centro de P&D de Sanidade Animal. Em 2002, Recebeu o premio do mérito cientifico do governo do estado de São Paulo pela participação no projeto genoma da Xylella Fastidiosa. Atua na área de imunologia, com ênfase em imunologia celular e aplicada. em suas atividades profissionais interagiu com 185 colaboradores em co-autorias de trabalhos científicos. em seu currículo Lattes os termos mais freqüentes na contextualização da produção cientifica, tecnológica e artistico-cultural são: Molecular Immunology, Viral Immunology, Immunogenetic, Animal Diseases, Molecular and Immunologcal Diagnosis, Leukosis Enzootic Bovine, Salmonellosis, Mycoplasmosis.
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/1785224233609330
Contato:
ferreiv@biologico.sp.gov.br

 

Alice Akimi Ikuno é Pesquisador Científico do Instituto Biológico, Centro de P&D de Sanidade Animal.
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/0471177359874348
Contato: ikuno@biologico.sp.gov.br


Reprodução autorizada desde que citado a autoria e a fonte

Dados para citação bibliográfica(ABNT):

FERREIRA, V.C.A.; IKUNO, A.A.  Uma boa razão para acompanhar as aves de nossos parques. 2009. Artigo em Hypertexto. Disponível em: <http://www.infobibos.com/Artigos/2009_2/aves/index.htm>. Acesso em:


Publicado no Infobibos em 16/06/2009

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