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AQUECIMENTO GLOBAL, TAMANDUÁS E ARBORIZAÇÃO URBANA

Dr. Guilherme de Miranda Mourão

O título é provocativo. Afinal, o que pode haver em comum em temas tão diversos? Cada vez mais os cientistas reúnem evidências de que a temperatura média do planeta vem aumentando em razão das atividades humanas. O problema deverá ser mais grave nas regiões tropicais, especialmente em áreas de baixa altitude. Então, as cidades onde as temperaturas já eram naturalmente elevadas, como muitos municípios do Centro-Oeste, Norte e Nordeste do Brasil deveriam estar discutindo as possíveis consequências e medidas mitigadoras do aumento previsto de 3º a 6ºC na temperatura média na próxima década (p. ex., veja a publicação: “Mudanças climáticas globais e seus efeitos sobre a biodiversidade - Caracterização do clima atual e definição das alterações climáticas para o território brasileiro ao longo do Século XXI”, de 2007, do Ministério do Meio Ambiente).

Há décadas moro em Corumbá, a cidade que é considerada a capital do Pantanal em Mato Grosso do Sul. Por conhecê-la bem, vou apresentá-la como modelo, mas aposto que muitos leitores vão reconhecer semelhanças com suas próprias cidades. O clima de Corumbá está longe de ser ameno. Nos meses quentes de novembro e dezembro de 2009, a média das temperaturas máximas chegou a 35,5ºC e a máxima absoluta registrada foi de 41,6ºC (dados INMET). Naquele ano, Corumbá teve a duvidosa glória de ter tido a temperatura mais quente no inverno (41,1ºC), entre todos os municípios brasileiros (http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL1317175-5598,00.html), mas a mínima absoluta do inverno de 2010 chegou a 6,7ºC, e, devido aos fortes ventos, a sensação térmica foi ainda mais baixa. Esta grande amplitude nas temperaturas durante o inverno é característica histórica de Corumbá, mas pode se agravar com o aquecimento global. As partes geladas do hemisfério, incluindo a Antártida e as porções ao sul da América do Sul são como um dínamo de ventos. Quando este dínamo consegue energia, na forma de calor, ele sopra. Sopra um vento frio e seco. Parece contraditório, mas aquecer as regiões mais frias do hemisfério, pode determinar um aumento na frequência e intensidade das frentes frias que se originam lá e que atingem Corumbá com tanta intensidade. Temperaturas extremas como estas já são limitantes para vários tipos de atividade humana. No inverno, durante os eventos de frentes frias, as noites corumbaenses ficam praticamente desertas. No verão, poucas pessoas se atrevem a fazer caminhada nos horários tórridos do dia, e é provável que o comércio observe queda nas vendas nessas horas. Então, precisamos de alguma coisa que sombreie e refresque a cidade nos períodos de calor intenso, mas que conserve o calor e a proteja dos ventos fortes durante os eventos de friagem. Já adivinharam a idéia? Ainda não? Então vamos falar um pouco sobre tamanduás.

O tamanduá-bandeira, que os biólogos gostam de chamar pelo nome pomposo de Myrmecophaga tridactyla, é um animal surpreendente na aparência e no seu modo de vida, e ocorre em abundância no Pantanal. Ele é considerado um animal característico de clima quente, mas tem uma pele surpreendentemente grossa, com pelos longos e abundantes. É como se vestisse um grosso casaco de peles. Como todos sabem, ele se alimenta quase exclusivamente de formigas e cupins, alimentos ricos em proteína, mas pobres em energia. Esta dieta desbalanceada faz com que o tamanduá-bandeira tenha problemas com seu metabolismo basal, que é bem mais baixo que o esperado para um mamífero daquele tamanho e é uma das causas do tamanduá ter dificuldades em ajustar fisiologicamente sua temperatura, quando a temperatura externa é muito elevada ou muito fria. Vou explicar melhor: o grosso casaco de peles confere ao tamanduá o que os cientistas chamam de grande “insulação térmica”, ou seja, ele suporta uma amplitude relativamente grande de temperatura (algo entre 15º a 36ºC) sem ter que lançar mão de recursos fisiológicos para controlar a temperatura, como fazem a maioria dos mamíferos - coisas como suar, tremer ou se arrepiar. Entretanto, quando a temperatura ambiente vai abaixo de 15º ou acima de 36ºC, o tamanduá-bandeira começa a ter problemas. Temperaturas acima de 36ºC são frequentes nos verões pantaneiros e, como vimos, os eventos de frentes frias podem levar a temperatura bem abaixo dos 15ºC. Então, como os tamanduás lidam com estas temperaturas extremas no Pantanal? 

Estas características inusitadas dos tamanduás e perguntas como esta acima chamaram minha atenção e a de meus alunos, e temos estudado o tamanduá há décadas. Uma de minhas alunas, Ísis Medri, usou radiotransmissores fixados nos tamanduás para monitorá-los em uma área do Pantanal. Sempre que ela sabia, pelo sinal captado por uma antena receptora, que um tamanduá estava dentro de um fragmento de mata logo à frente, ela tomava a temperatura do ar, fora e dentro do fragmento, nas proximidades de onde o animal se encontrava. Ambas as temperaturas eram tomadas à sombra. Os resultados deste estudo foram publicados em 2007, no volume 271 da revista especializada Journal of Zoology, mas os pontos que gostaria de chamar a atenção aqui são: (1) sempre que fazia muito frio ou muito calor os tamanduás se abrigavam dentro dos fragmentos e (2) as temperaturas dentro dos fragmentos foram até cinco graus mais quentes que as temperaturas externas nos eventos de frentes frias e até cerca de 7-8 graus mais frescas do que as temperaturas externas durante as horas mais quentes do verão.

Agora acho que a maioria dos leitores pegou a idéia. Se plantarmos árvores, muitas árvores, na área urbana, podemos imitar o efeito que elas têm em áreas como o Pantanal. Creio que todos já experimentaram a sensação refrescante ao penetrar em um bosque ou sob as sombras de árvores em um parque durante um dia ensolarado. Se estendermos um tapete de copas que literalmente sombreie as ruas de cidades como Corumbá, aposto que seremos capazes de amortecer os efeitos de temperaturas extremas. É claro que será necessário repensar as cidades, o sistema de distribuição de energia elétrica e iluminação pública, e até a circulação de automóveis. Em Corumbá temos a sorte de termos a maioria das ruas largas o suficiente para permitir até a construção de canteiros centrais. Provavelmente, algumas ruas do centro da cidade têm vocação para serem transformadas em calçadões, de uso exclusivo de pedestres à sombra de árvores copadas. De qualquer forma, acho que os tomadores de decisão deveriam se inspirar nos tamanduás e começar a discutir seriamente planos de re-arborização urbana capazes de abaixar a temperatura média das cidades em vários graus centígrados, e assim fazer frente aos desafios impostos por um planeta em aquecimento.


Guilherme de Miranda Mourão concluiu o doutorado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia em 1996. É Pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, com lotação na Embrapa Pantanal e também professor e orientador do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Conservação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de Ecologia, com ênfase em Conservação e Manejo de Fauna. Bolsita de Produtividade em Pesquisa 1D-CNPq
Contato: gui@cpap.embrapa.br



Reprodução autorizada desde que citado a autoria e a fonte


Dados para citação bibliográfica(ABNT):

MOURÃO, G.M.  Aquecimento global, tamanduás e arborização urbana. 2010. Artigo em Hypertexto. Disponível em: <http://www.infobibos.com/Artigos/2010_3/AquecimentoGlobal/index.htm>. Acesso em:


Publicado no Infobibos em 17/09/2010