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Café honesto é café solúvel

 

Celso Luis Rodrigues Vegro

       Há uma miséria maior do morrer de fome no deserto

- é não ter o que comer na Terra de Canaã”.

(José Américo de Almeida – A Bagaceira)

 

            A questão da qualidade do café oferecido à população brasileira pela parcela majoritária da torrefação nacional, constitui-se em problema que mais tem exigido da inteligência e vontade das lideranças públicas e privadas do agronegócio café. Esse tema voltou a cena após a publicação e revogação da Instrução Normativa 16 do Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA)1.

            Em termos de qualidade do café torrado e moído e torrado em grão, ação pioneira tem sido o Programa de Autofiscalização do Café Torrado e Moído da Indústria Brasileira do Café - Selo ABIC - que, desde 1989, promove coleta de amostras no varejo de todo o país e as envia para laboratórios credenciados, em que o grau de pureza do produto é verificado. Sem poder de polícia, as ocorrências de fraude por meio da adição de misturas ou de percentuais elevados de impurezas são denunciados aos órgãos competentes. Nos casos em que a empresa ostentava o selo, esse é imediatamente cassado e a empresa afastada do programa. Lamentavelmente, devido à morosidade da justiça brasileira, raríssimos foram os casos em que o fraudador e sua empresa foram exemplarmente punidos.

O Selo ABIC ganhou notoriedade, sendo ainda hoje a estampa mais consagrada entre os consumidores de café. Muito dessa reputação decorre da relativa confusão entre pureza e qualidade. A pureza é um dos requisitos da qualidade do produto que engloba uma infinidade de outros atributos essenciais na determinação dos padrões de qualidade2. De qualquer modo o investimento do segmento na condução desse programa surtiu bons resultados sendo um dos fatores responsáveis pelo crescimento do consumo interno.

Mais recentemente a ABIC criou um novo programa focado na questão da qualidade: Programa de Qualidade do Café (PQC). Com uma identidade visual bem característica (ouro, prata e bronze) alguns atributos de qualidade são destacados como aroma (fraco, suave a intenso), corpo (inexistente, suave a intenso), sabor (inexistente, suave a intenso), moagem (muito fina, fina a grossa), torra (muito escura, clara a escura) e ainda a proporção de arábica e robusta na mistura de grãos.

Tais indicações facilitam em muito o processo de escolha pelos consumidores e  certeza de estar adquirindo um produto em consonância com suas preferências, além de maior segurança da qualidade da bebida e a garantia de que existe uma estrutura de auditoria nesse programa. Os varejistas também colhem vantagens ao conceder preferência ao produto PQC como: aumento do valor agregado na gôndola, produto de qualidade certificada que promove uma diferenciação de seu ponto de venda.

Frente ao universo de torrefadoras e marcas de café oferecidas, ainda é muito baixa a adesão de empresas e suas respectivas marcas ao PQC. Ademais, depois de uma expansão relevante o programa estagnou com pouco menos de 200 torrefadoras aderentes e aproximadamente 350 marcas (talvez menos de 10% de toda a indústria)3. Todavia, trata-se de um esforço relevante que merece destaque na tentativa de apresentar um produto honesto aos consumidores.

Paralelamente aos esforços pela qualidade desenvolvidos pela indústria da torrefação, outras iniciativas tem sido conduzidas. O certame e posterior leilão dos cafés da Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA); o tradicionalíssimo concurso de qualidade da illycafè; os prêmios de qualidade dos principais estados produtores promovido por arranjos público/privado; os concursos de qualidade liderados por outras empresas torrefadoras e exportadoras; as edições de cafés safrados por parte de redes de varejo, entre outras iniciativas vieram a se somar ao esforço pela qualidade do café consumido no Brasil. Todas elas carregadas de inovações em que o aprendizado sobre a qualidade avançou tremendamente.

Em março de 2008, iniciativa do Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento, fez conhecer a Instrução Normativa 16 que estabelecia Regulamento Técnico de Identidade e Qualidade do Café Torrado em Grão e do Café Torrado e Moído. Três anos foram empregados nessa importante matéria, pois criaria um "padrão oficial de classificação para o café industrializado com requisitos de identidade e qualidade; técnicas de amostragem; o modo de rotulagem e aspectos referentes à classificação do produto". Sob tal regulamentação e fiscalização, finalmente os consumidores de café teriam condições de saber o que de fato lhes é oferecido pelas torrefadoras. Após debates entre os técnicos do MAPA e as lideranças da indústria da torrefação e, especialmente, ignorando-se olimpicamente as opiniões dissonantes, estabeleceu-se a data de início de sua vigência para fevereiro de 2010.

            A chegada da IN 16 foi objeto de grande divulgação da mídia. Os principais telejornais destacaram com muita ênfase a importância da norma na melhoria da qualidade do café consumido no Brasil a partir da proposta de regulamentação federal do segmento. Após todo o estardalhaço midiático, 24 horas depois de ser implantada, o vigor da instrução foi adiado para 2014, excetuando-se os teores de impurezas e/ou misturas (1%) e o percentual máximo de água adicionada ao produto. Toda a riqueza de detalhes sobre os diversos atributos da qualidade do café foi abandonada, mantendo-se o mais vicioso: limite de 5% de umidade adicionada ao produto.

            Na mesma semana que a instrução foi adiada a indústria tratava de renegociar sua tabela de preços com o varejo reivindicando reajuste de 30% em nível de atacado. A concomitância temporal dos fatos é um caso nitidamente de diversionismo, ou seja, utilização espúria da mídia para desinformar o consumidor sobre a qualidade do produto e com isso desviar a atenção popular do assunto verdadeiramente relevante que é pegar carona na inércia inflacionária que volta a rondar a economia brasileira, visando engordar lucros.

            A escalada de preços do café verde certamente impacta a estrutura de custos de produção da indústria, uma vez que algo como a metade das despesas é composta pela aquisição de matéria prima. Entretanto, majoração de preços é sinônimo de redução do consumo e a migração para produtos substitutos. Ainda que para o café não exista um substituto perfeito, a redução do consumo pode ocorrer e diante desse provável cenário e nada mais apropriado para esse momento do que provocar uma onda na mídia, enaltecendo a qualidade do produto oferecido que esteve sob regulamentação oficial por apenas um dia, para em seguida apresentar a nova tabela de preços majorados.

Acrescentar água de resfriamento ao produto que foi torrado à temperatura de 220oC por pelo menos dezoito a vinte minutos é das marotagens mais insidiosas, pois além de encolher a demanda por matéria prima, produz lucros espúrios e deveria ser considerado crime contra a economia popular, pois peso em água é infinitamente mais barato do que em café. Ademais o consumidor corre o risco de levar um produto não recomendado para o consumo, em decorrência da provável deterioração mais rápida do produto a partir de tão elevado conteúdo de umidade. Não se trata de problema tecnológico, pois é possível resfriar o café utilizando circulação forçada de ar, mas os resfriadores a água são preservados e defendidos por gerarem ganho fácil.

Não há dúvida de que o limite de umidade deveria ser baixado para níveis residuais. A preocupação com o assunto não é mera filigrana e, para comprovar isso, bastam pequenas cálculos para se visualizar o tamanho do prejuízo para cafeicultores e consumidores. Antes, algumas premissas são necessárias:

a) suprimento do mercado por marcas chamadas “de combate” perfaz 75% do mercado e percentual estimado de água de 5% no produto final (almofada e vácuo). Custo da matéria prima empregada na preparação desse café = R$300,00/sc4;

b) suprimento do mercado por marcas de café superior perfaz 20% do mercado e percentual estimado de água de 3% no produto final. Custo da matéria prima empregada na preparação desse café = R$450,00/sc, e

c) suprimento do mercado por marcas goumet, torrado em grãos perfaz 5% do mercado e percentual estimado de água abaixo de 1% no produto final (desconsiderado para efeito de cálculo pois se enquadraria na categoria de café honesto).

A torrefação estima que o consumo interno em 2010 tenha alcançado as 19,5 milhões de sacas, das quais descontar-se-ia 1 milhão de sacas consumida na forma de solúvel, cappuccino e outras preparações a base de extrato de café (confeitos, doçaria, bebidas espirituosas).Tal volume de processamento de matéria prima, permite a elaboração dos seguintes cálculos:

a) lambujem capturada no mercado de café de combate = R$208 milhões; e
b) lambujem capturada no mercado de produto diferenciado = R$50 milhões.

Efetuadas as contas, os apreciadores de café transferiram para os torrefadores algo como R$258 milhões ao ano. Ademais, os cafeicultores deixam de comercializar no mercado interno aproximadamente 800 mil sacas de café verde, substituídas por água no produto final. Se os montantes não são suficientes para caracterizar perante o Ministério Público crime contra a economia popular, temos que necessariamente concordar com o líder francês quando afirmou que esse país não era sério, ou como prefere José Américo, “morrer de fome na Terra de Canaã”, que livremente traduzido seria: esqueçam o torrado e moído e tomemos todos um honesto solúvel.

1 A IN 16 teve sua publicação ocorrida no DO de 23/02/2011 e sua revogação no dia seguinte.  

2 No Brasil temos quatro os tipos de qualidade do café acompanhando escala de pontuação sensorial de zero a 10. Cafés com nota abaixo de 4,5 não são recomendados para o consumo. Entre 4,6 e 6,0 o café é apenas tradicional; entre 6,0 e 7,3 o café já é de padrão superior e acima de 7,3 enquadram-se os produtos considerados gourmet.

3 Lamentavelmente não se dispõe de números precisos pois o portal da ABIC está em fase de repaginação e ainda não existe um menu de navegação para consulta aos dados atualizados.

4 Para checar o quão aderente à realidade de mercado encontra-se o custo de aquisição da matéria prima de baixa qualidade, basta cotejá-lo com a oferta do estoque da CONAB para a qual não houve interessados com preço de abertura de R$460,00/sc.


Celso Luis Rodrigues Vegro é Engenheiro Agrônomo pela Escola Superior de Agricultura "Luíz de Queiróz" - USP/Piracicaba com especialização em Sistemas Agrários pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Concluiu mestrado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (1992). Atualmente, atua como Pesquisador Científico nivel VI do Instituto de Economia Agrícola da Agência Paulista de Tecnologia para os Agronegócios da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo. Dentre as diversas áreas de estudo, concentram-se de trabalhos em temas ligados à coordenação de cadeias agroindustriais, inovação tecnológica e tendências do mercado de alimentos e bebidas, especialmente, do café.
Contato:
celvegro@iea.sp.gov.br 



Reprodução autorizada desde que citado a autoria e a fonte


Dados para citação bibliográfica(ABNT):

VEGRO, C.L.R. Café honesto é café solúvel. 2011. Artigo em Hypertexto. Disponível em: <http://www.infobibos.com/Artigos/2011_1/CafeHonesto/index.htm>. Acesso em:


Publicado no Infobibos em 16/03/2011