COMENTÁRIOS SOBRE ASPECTOS TÉCNICOS E POLÍTICOS DAS QUEIMADAS DE CANA

 por Alceu de Arruda Veiga Filho

Sempre existiu na cultura brasileira a idéia de que precisamos de leis cada vez mais severas. A noção que a fundamenta é de que tudo se passa como se os seculares males da corrupção, do nepotismo, da sonegação fiscal, da existência da pobreza e miséria e falta de políticas públicas dirigidas a criar cidadania, – tudo isso pudesse ser sanado com leis mais duras e punitivas. As desesperanças dos que se vêem sem defesa e sem possibilidade de mudar esse estado de coisas leva a pressionar os legisladores para que elaborem tais leis.

Mas, o que não se percebe, ou, pelo menos, o que se manifesta com muito menos veemência é a noção de que leis, para serem cumpridas, precisam ter condições de aplicação, o que passa pela existência da fiscalização e monitoramento.

Para levantar evidências sobre essa característica comportamental foi feita uma coleta de informações no Jornal de Piracicaba1, Seção Opinião: Cartas, entre julho e setembro de 2004, no período do inverno, auge da colheita de cana neste Estado e no município de Piracicaba. Do total de 39 cartas publicadas constatou-se uma opinião favorável à queimada e outra que pode ser considerada neutra. As demais 37 (95%) constituem-se de declarações contra as queimadas, sendo que 24 opiniões (64%) são mesclas de críticas aos prejuízos causados à saúde, ao meio ambiente e à exploração do trabalho; e 13 (35%) criticando especificamente a atual legislação. Nenhuma observação ou comentário sobre a necessidade de aplicação.

A conseqüência desse tipo de pressão pública é, a nosso ver, traduzida pela proposta de projeto de lei2 encaminhada por vereador de Piracicaba, e que conforme divulgada na imprensa tinha como objetivo a proibição sumária da queima de cana para qualquer finalidade, dobrando a multa na reincidência, e que mais tarde sofreu reformulação para incluir prazo até 2012. Sua votação, realizada no início dos trabalhos legislativos de 2006, não foi vitoriosa em função da maior organização dos fornecedores de cana, os quais conseguiram influir junto à maioria dos vereadores.

Esse projeto de lei, fundamentado em constatações sobre os efeitos na saúde dos habitantes da cidade e no meio ambiente, sobre os quais aqui não se contesta, padece, a nosso ver, dessa visão desesperançada, a qual parece ficar sem saída quando ocorre uma reação dos políticos em sentido contrário.

Tentar contribuir para esse debate é o objetivo deste artigo, o que nos leva a apresentar a questão das queimadas como um fenômeno complexo, mas com outras opções de solução.

Fatores de indução da mecanização da cana-de-açúcar

Sabemos que existem várias fontes de indução de mudança técnica, como é o caso da colheita mecânica de cana-de-açúcar3. Uma primeira fonte, de natureza econômica, é o aumento de custos de produção da colheita manual ou a redução dos mesmos com a adoção da colheita mecânica. Outra forma de indução é derivada do aumento de rentabilidade da atividade, que permite fazer os investimentos necessários para aumentar a eficiência como um todo do processo produtivo agrícola. Uma segunda fonte, de natureza técnico-operacional, é originada pela disponibilidade de máquinas, pelo acesso à assistência técnica, pela existência de capacitação no domínio da operação de mecanização, e também dificuldades em função de limitação topográfica, relativa aos terrenos aptos à mecanização, etc. E, por fim, existe uma terceira fonte, que vem do ambiente institucional-legal. Assim, a pressão exercida pelo Ministério Público de São Paulo para impedir as queimadas de cana no Estado faz parte desse amplo conjunto de fatores.

É importante saber que todas essas fontes de indução de mudança técnica funcionam ao mesmo tempo, estimulando e algumas vezes se anulando, outras vezes potencializando suas forças, de forma que em cada período é preciso analisar o conjunto das fontes e verificar qual ou quais estão exercendo as maiores pressões, e qual é o vetor final derivado do conjunto de variáveis atuantes.

Podemos verificar que o processo de mecanização da colheita, no Estado de São Paulo, vem de longa data, tendo se iniciado em meados da década de 1970, quando se começou a adoção das máquinas colhedoras em número significativo. Esse processo teve origem na necessidade de se resolver problemas tópicos de escassez de trabalho sendo também estimulado pela direção geral do processo de mudança técnica no sistema de produção agrícola da cana em São Paulo, o qual já vinha ocorrendo pelo menos desde a década dos 1960.

Sua difusão acabou por não ocorrer durante os anos oitenta e parte dos anos noventa, do século XX, por uma série de fatores, entre eles as crises econômicas, a instabilidade do próprio setor sucroalcooleiro em termos de rentabilidade, salários baixos e não estimuladores da troca do sistema de colheita, desenvolvimento técnico das máquinas não satisfatório em termos de desempenho, quando comparado com o sistema manual de colheita, e suas repercussões no rendimento industrial de açúcar, e assim por diante.

Já a partir de meados dos anos 1990, instalaram-se novas montadoras no Brasil, o desenvolvimento técnico das máquinas foi relevante, o domínio dessa técnica em termos de operação e a adaptação das lavouras à mecanização da colheita já estavam bem adiantados (é bom lembrar que a experiência de adotar colheita mecânica de cana para a extensão de área de cultura como a do Brasil é inédita no mundo), acontecendo em seguida o boom, no final dos anos 1990 e início de 2000, quando esses fatores técnicos positivos juntaram-se aos estímulos de preços da cana, do açúcar e do álcool.

Assim, sabendo dessa complexidade e reconhecendo as legítimas necessidades dos cidadãos habitantes dos municípios canavieiros em não conviver com os problemas resultantes das queimadas de cana4 é que se propõe o que se segue para quebrar o ciclo vicioso de substituição de leis cada vez mais severas e punitivas.

Uma proposta de estratégia a ser adotada pela sociedade

A pressão para o impedimento de queimadas de cana no Estado de São Paulo começou a adquirir vulto a partir de meados da década de 1990, pelas ações do Ministério Público que utilizava a legislação da época, como o Código Florestal e outras leis ambientais, para responsabilizar judicialmente os envolvidos nas queimadas. Em 1997 entrou em vigor o Decreto Estadual no. 42.056, o qual estabelecia prazos de 8 anos para ocorrer o fim da despalha de cana com fogo nas áreas mecanizáveis e 15 anos nas áreas não-mecanizáveis, além de outras providências.

O decreto sendo uma norma específica para a queima tinha efeito imediato e sua aplicação provocou uma intensa movimentação dos segmentos diretamente atingidos5, como os produtores de açúcar e de álcool e os fornecedores de cana. Por força disso, alguns anos depois, a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo aprovou nova legislação, vetada pelo governador. O veto foi derrubado passando então a vigorar a Lei no. 10.547, de maio de 2000. O objetivo dela era adequar os prazos de eliminação aos limites vigentes em lei federal, estendendo para 20 anos (25% da meta a cada 5 anos), com início do prazo a contar da vigência da lei, ou seja, ganhando-se 4 anos de prorrogação.

Os órgãos governamentais responsáveis pela fiscalização/aplicação utilizaram-se do Decreto 42.056 como regulamentador da Lei 10.547, repondo na prática seus prazos e protocolos de operação. Novamente houve intensa movimentação e articulação dos principais atores afetados, o que levou a aprovar-se a Lei no. 11.241, de 19/09/2002, que determinou novos prazos para o fim das queimadas, agora para 2021 nas áreas mecanizáveis e 2031 nas áreas não-mecanizáveis, mas iniciando já no primeiro ano de vigência com um mínimo de 20% de área cortada sem queima. Se os prazos do Decreto 42.056 tivessem sido obedecidos, haveria que se ter, em 20016, quarto ano pelo decreto, um percentual de 40% de área colhida com cana crua para a área mecanizável, parecendo então que as negociações levaram a um meio termo.

Vale a pena assumir uma luta para reverter desvantagens em relação ao decreto de 1997? Ou seja, visto de outra maneira, vale a pena enfrentar a resistência dos setores produtivos que atualmente contam com expressivo apoio de prefeitos e vereadores nos municípios canavieiros, principalmente em São Paulo, através da AMCESP, e da bancada de deputados estaduais, federais e senadores da república7? Ou é melhor e mais eficiente socialmente centrar o foco na exigência de fazer cumprir a atual legislação8?

Assim, a proposta é que a sociedade, através de suas organizações, pressione seus representantes, no executivo e legislativo, de modo a se cumprir a lei de queimadas de cana e sua regulamentação, no que diz respeito a:

Art. 11 – A autoridade ambiental determinará a suspensão da queima quando:

II - a qualidade do ar atingir comprovadamente índices prejudiciais à saúde humana, constatados segundo o fixado no ordenamento legal vigente;

Art. 12 - A Secretaria de Agricultura e Abastecimento manterá cadastro das colheitadeiras disponíveis, por tipo, capacidade, idade e outros elementos essenciais, bem como de todas as novas colheitadeiras ou equipamentos ligados à operação.

Art. 13- O Poder Executivo, com a participação e colaboração dos Municípios onde se localizam as agroindústrias canavieiras e dos sindicatos rurais, criarão programas visando:

I - à requalificação profissional dos trabalhadores, desenvolvida de forma conjunta com os respectivos sindicatos das categorias envolvidas, em estreita parceria de metas e custos;

II - à apresentação de alternativas aos impactos sócio-político-econômico-culturais, decorrentes da eliminação da queima da palha da cana-de-açúcar;

III - ao desenvolvimento de novos equipamentos que não impliquem dispensa de elevado número de trabalhadores para a colheita da cana-de-açúcar;

IV -ao aproveitamento energético da queima da palha da cana-de-açúcar, de modo a possibilitar a venda do excedente ao sistema de distribuição de energia elétrica.

Art. 14 - A Secretaria de Agricultura e Abastecimento, através dos órgãos e dos Conselhos Municipais e Câmaras Setoriais da Cana-de-Açúcar, com a participação das demais Secretarias envolvidas, acompanhará a modernização das atividades e a avaliação dos impactos da queima sobre a competitividade e ocorrências na cadeia produtiva.

No que concerne à Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo, em suas instituições de pesquisa e de extensão, existe capacidade técnica, experiência acumulada e desenvolvimento tecnológico na cadeia produtiva da cana-de-açúcar que podem dar suporte aos requisitos estabelecidos na lei. No caso dos órgãos fiscalizadores o Estado conta com a Polícia Ambiental para as autuações, e com a Cetesb para o controle das emissões de poluentes oriundos das queimadas, desde que haja aparelhamento adequado.

Essa é uma experiência de cidadania a ser construída, e que depende de uma atuação articulada e contínua da sociedade no aprofundamento da discussão sobre as obrigações do governo estadual, para estabelecer prioridades, fonte de recursos, metas e cronograma a ser executado.

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Piracicaba/SP
Sem queimadas de Cana


Piracicaba/SP
Época de queimadas de cana


Alceu de Arruda Veiga Filho, é Pesquisador Científico e mestre em Política Científica e Tecnológica pela Unicamp. Atua no Pólo Regional Centro Sul, em Piracicaba, pela Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo. Desenvolve pesquisas e estudos em economia do setor sucroalcooleiro, economia da inovação, planejamento e desenvolvimento agrícola, agricultura familiar, análise e avaliação de investimentos e avaliação de políticas públicas
Contato:
alceu@aptaregional.sp.gov.br

Referências

1 O Jornal de Piracicaba é o principal jornal da cidade, cobrindo 13 cidades da região e uma população de 692.588 habitantes. Sua tiragem é 16.253 exemplares nos dias úteis e 19.428 exemplares no domingo (www.sucursalsp.com.br). O levantamento mostra a seguinte distribuição do número de observações coletadas: 1 em julho, 7 em agosto e 31 em setembro, totalizando 39 cartas enviadas ao JP. Considerando que o jornal foi editado, nesse período, durante 79 dias e que a média de cartas é aproximadamente 7 por dia, as 39 opiniões relativas à queimada representaram algo como 7% do total.

2 Ver em Proibindo as queimadas, de Capitão Gomes, Jornal de Piracicaba, 19/01/2005.

3 Veiga Filho, A.de A; Szmrecsányi, T. A mecanização da colheita de cana como processo de inovação. Anais do XX Simpósio de Gestão da Inovação Tecnológica, São Paulo, novembro de 1998.

4 Gonçalves, D. B. Sob as cinzas dos canaviais: o perigoso impasse das queimadas no Estado de São Paulo. Informações Econômicas, São Paulo, v.35, n.8, ago. 2005.

5 Gonçalves, D.B. A Regulamentação de Queimadas e as Mudanças nos Canaviais Paulistas. Rima Ed. São Carlos, 2002.

6 Gonçalves, J.S.; Souza, S.A.M. Proibição da queima de cana no Estado de São Paulo: simulação na área cultivada e na demanda da força trabalho. Informações Econômicas, SP, v.29, n.3, mar. 1998.

7 MELLO, F. O. T; PAULILLO, L. F., 2005. Metamorfoses da rede de poder sucroalcooleira paulista e desafios da auto-gestão setorial. Agricultura em São Paulo, São Paulo, v.52, n.1, p. 41-62, jan/fev, 2005.

8 Matéria de Ângelo Davanço, de 31/03/2006, no Jornal A Cidade, de Ribeirão Preto/SP, relata a polêmica travada na justiça sobre a vigência da lei complementar 1.616 do Código Municipal do Meio Ambiente (proibição da queima de cana), e que se encontra adiada por decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, obtida através de liminar.


Reprodução autorizada desde que citado o autor e a fonte


Dados para citação bibliográfica(ABNT):

VEIGA FILHO, A. A. Comentários sobre aspectos técnicos e políticos das queimadas de cana. 2006. Artigo em Hypertexto. Disponível em: <http://www.infobibos.com/artigos/queimadas_cana/index.htm>. Acesso em:

publicado no InfoBibos em 05/04/2006